Nei Duclós
A crítica cinematográfica é cega. Não consegue enxergar um filme. Acharam “Ensaio sobre a cegueira”, de Fernando Meirelles, baseado no romance de José Saramago, deprimente, apocalíptico, azedo, óbvio. Se é para despejar adjetivos, para que a crítica? Uma análise precisa ver o que a obra mostra de maneira explícita, em todos os frames, cortes, formas, objetos, situações, diálogos, cores. E não o que o crítico acha. Não podemos achar nada sobre coisa alguma, apenas nos render ao que é evidente. E o filme é de uma transparência didática e cristalina: despojados da visão, as pessoas se desvinculam dos laços sociais, que regem a vida contemporânea por meio do massacre dos signos manipulados (os faróis do trânsito, as faixas de segurança, a indústria visual). Emerge então o que estava enterrado sob pressão, a barbárie e o sentimento.
A barbárie se manifesta na reprodução fiel da sociedade no microcosmo de um abrigo dos infectados pela epidemia (com um assustador Gael Garcia Bernal na liderança dos malfeitores). As pessoas chafurdam na sujeira, se submetem às maiores humilhações por comida, matam-se mutuamente, abrem mão dos vínculos familiares, se despedaçam. Quando ficam livres da prisão, encontram o Brasil, o país que não vê onde está realmente metido. As cenas de São Paulo imunda é o retrato do país entregue às moscas e aos cachorros. Numa das cenas, em que essa maravilhosa atriz chamada Juliane Moore entra num supermercado que está sendo saqueado, vemos exatamente as mesmas imagens que recentemente assombraram o noticiário, quando uma multidão entrou num supermercado inundado. As situações são praticamente idênticas.
O Brasil, no filme de Meirelles, é a metáfora do mundo entregue ao caos, por força dos que não conseguem mais ver o ambiente que produziram. É muito pior do que a favela carioca. No Rio, a brutalidade está confinada aos redutos da miséria. Aqui, é a cidade inteira, gigantesca, que está imersa no caos. Os cegos tentam sobreviver assaltando, aos berros, encontrões, empurrões, arranhões. Ao mesmo tempo, descobrem que podem sentir alguma coisa pelos seus semelhantes, os que estão mais próximos, que compartilham a saga e o martírio.
Não se trata de amor à espécie, que a simples eliminação da visão não irá despertar. Mas de algum amor, que se manifesta no velho (um tocante Danny Glover) que se declara à moça (Alice Braga, a estrela cresce), na relação de amantes isolados, no arrependimento das traições (Mark Rufallo, intenso, concentrado), na descoberta dos rostos antigos e distantes. Livres dos signos que decidem a vida social do dinheiro, dos carros, dos edifícios, dos papéis e funções profissionais, as pessoas se reencontram, emocionadas com o que podem tocar e ouvir.
A civilização em queda, em Meirelles, é o paredão de concreto que tolda a visão do próximo. O céu, a natureza, ou a tempestade branca, símbolo da cegueira, é o rito de passagem necessário para que volte o que perdemos. É por isso que Juliane olha para o alto e vê a representação da cegueira. Depois desce o olhar e vê o muro de edifícios de Metrópolis. São Paulo, a megalópole brasileira, encarna o pesadelo da civilização que não se enxerga e vai em frente com seu trem de insânias.
Todo filme é sobre cinema: Juliane, a única que vê, é o olhar do cineasta que acompanha a tragédia. Ela pouco pode fazer a não ser olhar a loucura tomando conta de tudo. Há impotência em sua expressão de dor diante da brutalidade. Há denúncia nesse desespero mudo, mas não cego. Quando todos perdem a visão, o artista é o único que enxerga. Se ningém conseguir ver o que ele mostra de maneira tão eloqüente, é porque o Mal venceu e pouco resta de esperança.
Ficar indiferente ao filme é participar do cerco a essas evidências. Fernando Meirelles, autor de grandes obras, compõe a dor de ver, e o que ele enxerga é uma janela para o que nos oprime. Vamos ficar atentos, descobrir o que nosso olhar viciado oculta. Para isso existe o grande cinema.
RETORNO - Imagem desta edição: Juliane Moore, talento e técnica de uma grande atriz.
A crítica cinematográfica é cega. Não consegue enxergar um filme. Acharam “Ensaio sobre a cegueira”, de Fernando Meirelles, baseado no romance de José Saramago, deprimente, apocalíptico, azedo, óbvio. Se é para despejar adjetivos, para que a crítica? Uma análise precisa ver o que a obra mostra de maneira explícita, em todos os frames, cortes, formas, objetos, situações, diálogos, cores. E não o que o crítico acha. Não podemos achar nada sobre coisa alguma, apenas nos render ao que é evidente. E o filme é de uma transparência didática e cristalina: despojados da visão, as pessoas se desvinculam dos laços sociais, que regem a vida contemporânea por meio do massacre dos signos manipulados (os faróis do trânsito, as faixas de segurança, a indústria visual). Emerge então o que estava enterrado sob pressão, a barbárie e o sentimento.
A barbárie se manifesta na reprodução fiel da sociedade no microcosmo de um abrigo dos infectados pela epidemia (com um assustador Gael Garcia Bernal na liderança dos malfeitores). As pessoas chafurdam na sujeira, se submetem às maiores humilhações por comida, matam-se mutuamente, abrem mão dos vínculos familiares, se despedaçam. Quando ficam livres da prisão, encontram o Brasil, o país que não vê onde está realmente metido. As cenas de São Paulo imunda é o retrato do país entregue às moscas e aos cachorros. Numa das cenas, em que essa maravilhosa atriz chamada Juliane Moore entra num supermercado que está sendo saqueado, vemos exatamente as mesmas imagens que recentemente assombraram o noticiário, quando uma multidão entrou num supermercado inundado. As situações são praticamente idênticas.
O Brasil, no filme de Meirelles, é a metáfora do mundo entregue ao caos, por força dos que não conseguem mais ver o ambiente que produziram. É muito pior do que a favela carioca. No Rio, a brutalidade está confinada aos redutos da miséria. Aqui, é a cidade inteira, gigantesca, que está imersa no caos. Os cegos tentam sobreviver assaltando, aos berros, encontrões, empurrões, arranhões. Ao mesmo tempo, descobrem que podem sentir alguma coisa pelos seus semelhantes, os que estão mais próximos, que compartilham a saga e o martírio.
Não se trata de amor à espécie, que a simples eliminação da visão não irá despertar. Mas de algum amor, que se manifesta no velho (um tocante Danny Glover) que se declara à moça (Alice Braga, a estrela cresce), na relação de amantes isolados, no arrependimento das traições (Mark Rufallo, intenso, concentrado), na descoberta dos rostos antigos e distantes. Livres dos signos que decidem a vida social do dinheiro, dos carros, dos edifícios, dos papéis e funções profissionais, as pessoas se reencontram, emocionadas com o que podem tocar e ouvir.
A civilização em queda, em Meirelles, é o paredão de concreto que tolda a visão do próximo. O céu, a natureza, ou a tempestade branca, símbolo da cegueira, é o rito de passagem necessário para que volte o que perdemos. É por isso que Juliane olha para o alto e vê a representação da cegueira. Depois desce o olhar e vê o muro de edifícios de Metrópolis. São Paulo, a megalópole brasileira, encarna o pesadelo da civilização que não se enxerga e vai em frente com seu trem de insânias.
Todo filme é sobre cinema: Juliane, a única que vê, é o olhar do cineasta que acompanha a tragédia. Ela pouco pode fazer a não ser olhar a loucura tomando conta de tudo. Há impotência em sua expressão de dor diante da brutalidade. Há denúncia nesse desespero mudo, mas não cego. Quando todos perdem a visão, o artista é o único que enxerga. Se ningém conseguir ver o que ele mostra de maneira tão eloqüente, é porque o Mal venceu e pouco resta de esperança.
Ficar indiferente ao filme é participar do cerco a essas evidências. Fernando Meirelles, autor de grandes obras, compõe a dor de ver, e o que ele enxerga é uma janela para o que nos oprime. Vamos ficar atentos, descobrir o que nosso olhar viciado oculta. Para isso existe o grande cinema.
RETORNO - Imagem desta edição: Juliane Moore, talento e técnica de uma grande atriz.
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