12 de dezembro de 2008

COLT É IRMÃO DA WINCHESTER




Nei Duclós

Em dois filmes irmãos - Cão Danado (1949), de Akira Kurosawa, e Winchester 73 (1950), de Anthony Mann - Caim e Abel se defrontam depois de uma perseguição implacável. O que liga os protagonistas em cada filme são armas de estimação, importantes, raras. No Japão do pós-guerra, um colt roubado vira instrumento de crimes sucessivos, enchendo de culpa seu dono, o policial (Toshiro Mifune), que depois de muita luta, recupera a arma. No velho Oeste, a Winchester perfeita, considerada “uma entre um mil”, é disputada pelos dois filhos de um rancheiro e acaba passando de mão em mão até o duelo final, quando o filho bom (James Stewart) a resgata ao eliminar, no meio das pedras de um penhasco, o irmão assassino.

Existe sempre um Kuroswa maior para assistirmos. Cão Danado é noir criado pelo pai da matéria (o cinema). Todos se inspiraram, chuparam, copiaram o Mestre japonês, principalmente os americanos. Quantas vezes você não viu uma investigação se desenvolver em meio a um calorão que faz todo mundo, principalmente os perseguidores, passarem o lenço no rosto e na cabeça a cada segundo? Quantas vezes você não seguiu uma narrativa em que entram apenas as pernas em movimento dos atores? Quantas vezes não viu um filme que começa com um animal torturado? Detalhes que intensificam visualmente a obra e se transformam num espetáculo à parte.

O faroeste refilmou várias realizações do Mestre (John Sturges, Sergio Leone, entre outros), mas não desta vez. Os dois filmes irmãos percorrem leitos comuns da narrativa, mas não se trata da mesma história. O que notei são os pontos de contato, poderosos. Além dos apontados acima – irmandade (virtual, no filme japonês, e real, no faroeste) e as armas roubadas – o que une os dois filmes é a vingança. O policial quer vingar os crimes praticados pelo ladrão com seu colt e o rancheiro quer vingar, armado de sua winchester, a morte do pai pelas costas, um crime cometido pelo próprio irmão. A revanche se cumpre em pleno calor, mas em ambientes opostos. Em Kurosawa, num ermo florido, onde os duelistas se dilaceram e quase não são percebidos pela vizinhança em bocejo. Em Mann , no meio das pedras e do pó, com os dois contendores sós, sem ninguém ao redor, a não ser a História da Sétima Arte e nós, os admiradores confessos e obecados por cinema.

Como já foi apontado pela crítica, o policial e o ladrão são como faces do mesmo rosto. Ambos lutaram na guerra, foram roubados na volta para casa, só que um escolheu o Bem, o emprego, e o outro o Mal, a vida fácil e ressentida, sem trabalho mas com dinheiro alheio. Seriam como irmãos com objetivos diferentes, que acabam se cruzando na obsessiva trajetória compartilhada entre um, que quer solucionar os crimes, e o outro, que quer agradar a namorada com presentes caros. Os dois irmãos de fato, no faroeste, foram treinados pelo pai, morto depois que o filho tentou se esconder em sua casa fugido dos xerifes.

A convivência é impossível quando os crimes são imperdoáveis. O desfecho é obrigatório: um precisa eliminar o outro. A sombra que essas histórias projetam são vividas por nós, hoje. Os criminosos são vocacionados para o Mal ou fruto de situações de colapso? Como diz um trabalhador do filme de Kurosawa, cunhado do ladrão: ele tem muita raiva, culpa o Japão por tudo. Conhecemos essa história, não? Quantas vezes ouvimos ou dizemos a explicação definitiva: “É o Brasil!” A culpa é do país, por isso todos podem cometer qualquer crime.

Esse tema é debatido em diálogos importantes. O veterano inspetor Sato, interpretado por Takashi Shimura, não acredita em vítimas do sistema, mas em ruindade mesmo, ao contrário do novato interpretado por Mifune, que vê na barbárie da guerra entre nações a origem do comportamento do ladrão. Debate que nos consome aqui no Brasil, com pessoas divididas entre a recuperação e a pena de morte. No faroeste, James Stewart explica que o erro do pai foi ensinar a técnica, mas não a ética.

O que dizer mais desses dois filmes imperdíveis, sumidos do mapa e que deveriam ser obrigatórios , pelo menos uma vez por ano, nos canais de televisão aberta e fechada? Podemos apontar a esplêndida pradaria de dia e de noite no filme de Mann, com cactos irmanados com a lua; e as seqüências sufocantes de Kurosawa, intercaladas por grandes janelas, como o jogo de beisebol no estádio lotado ou a dança das coristas no bas-fond suspeito. Tudo é solene e sublime quando há arte, quando existem cineastas, atores fundamentais, quando o cinema diz a que veio.

Um colt e uma winchester: o talento puxa o gatilho. Alguém vai morrer no final. Se segurem nas cadeiras, porque ninguém está na terra a passeio.

RETORNO - Imagens desta edição: James Stewart na primeira foto e Toshiro Mifune e Takashi Shimura na segunda.

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