1 de dezembro de 2008

DEZEMBRO, O SUSTO DO TEMPO


BATE O BUMBO - Minha resenha sobre a trilogia de Máximo Gorki, que publiquei no caderno de Cultura do Diário Catarinense e reproduzi aqui no Diário da Fonte e no meu site, está bem destacado, a partir de hoje, no prestigiado Digestivo Cultural, na seção Ensaios. Estou muito bem acompanhado, por grandes escritores. Agradeço a Rafael Rodrigues pela gentileza da publicação e pelo cuidado e a competência com que encaminhou esse processo.

Nei Duclós

Vi dezembro chegar nas luzes da vizinhança. Elas piscam, insistentes, o susto do Tempo. Tentam surrar a lembrança da véspera, trágico novembro. Prometem festa, quando há dor. Vagalumes fixos de cores berrantes, estão deslocadas neste final de anti-primavera, quando no lugar de flores, colhemos luto. Quanto mais antigos somos, mais dezembro nos aproxima daquele choro derramado, posso dizer: de criança. Ainda mais agora, quando as cicatrizes do paraíso nos lembram o quanto somos pobres aqui no Sul tão celebrado. A pobreza quase oculta ficou ostensiva. A paisagem derreteu e o morro veio abaixo, levando junto o sonho de felicidade.

De repente, o Brasil inteiro descobriu que aqui, lugar de alegria no verão, quando todos nos visitam, é também um espaço de escassez e desperdício. Vidas sumiram, terrenos deixaram de existir, cidades foram riscadas do mapa, bairros inteiros engoliram seus habitantes. Quem consolará o brasileiro deste quadrante, que custa a acordar do pesadelo, enquanto milhares de abnegados heróis trazem a comida e a água, e permanece nas mãos de Deus o único consolo?

O ano não prometia esse desfecho. Tínhamos a ilusão de que todos os equívocos, cada vez mais intensos a cada temporada, como o volante arrogante, a irresponsabilidade coletiva, a ansiedade geral, a brutalidade possante expressa em motores cada vez mais hegemônicos, poderiam ser manobrados pela paciência, a perseverança, o otimismo e o prazer, enfim de viver na praia. Mas com a pressão das águas, tudo ficou insuportável. Não é possível achar normal ter que jogar o carro para a calçada para dar vez ao mastodonte que o pressiona com roncos, luzes e o olhar feroz.

Não queremos mais correr no estacionamento para que o animal, que veio zunindo do cruzamento, possa imediatamente colocar sua carruagem na vaga inexistente. Não queremos atravessar a rua de coração na mão. Não queremos ouvir o som alto, o vozerio gritado, as conversas bisonhas, a beberagem, a comilança, a confraternização visigoda numa época que pede civilização e respeito. Queremos um verão equilibrado entre a perda que aqui todos sofreram e a necessidade de recompor as forças, sonhar um pouco, antes que tudo rebente.

Existe a certeza de que o Tempo deva ser aproveitado, como se viver fosse sugar de canudinho a caipirinha que some por entre pedras de gelos. Que, se nos entregarmos a todos excessos cevados pela imaginação ao longo de um ano duro de trabalho, seremos recompensados por uma satisfação que jamais virá. Não tem outra saída. A paz de espírito vem da certeza na vida eterna. Se você se acha mortal, datado, finito e acabado, se não compreende que sua alma volta para a eternidade, então não há remédio. As férias serão sempre esse rosnado de feras, essa catinga de brutos, essa sedução primária.

Não que você vá se entregar à carolagem ou dizer “fica com Deus” a cada instante, como acontece com os fundamentalistas. A fé ficou tão desvirtuada pelos catequistas analfabetos, que a religião voltou a ser de foro íntimo, do tempo das catacumbas. Você reza, mas não faz um carnaval com suas orações. Você pede proteção, mas não fica advertindo os outros sobre sua correção. Somos precários, cometemos faltas. Devemos nos insurgir contra a barbárie, mas não virar pastores de Evangelhos mal lidos.

Rezemos pelas almas dos nossos mortos. E vamos ao mar, que o mar lava o sofrimento e nos prepara diante do irremediável. Saudemos o mar. Que fique em seu leito e que suas bênçãos sejam o único excesso deste início de dezembro, em que ficamos mais frágeis e com noção mais exata do quanto dependemos uns dos outros para sobreviver. A solidariedade deve ser também exercida pelos viajantes, que aportam aqui à procura da natureza, expulsa dos seus locais de origem.

Fica, penhasco, em guarda na praia posta em sossego. Mantenha-se, montanha, com suas trilhas e segredos. Voltem, cardumes, para nossas redes de espera. Que o pão e a água sejam repartidos, sempre. Porque assim ordenam os mandamentos do Alto, os que nos transcendem e por isso nos libertam. Chegue, dezembro, com seu abraço profundo. Traga redenção, traga de volta essa criança eternamente recém nascida, a esperança.

RETORNO - Imagem de hoje: Luzes, Cores, mais uma fotaça de Sérgio Saraiva.

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