25 de abril de 2008

MÁXIMO GORKI: CENAS DE “INFÂNCIA”


O mar da mediocridade tomou conta das livrarias, e não é apenas auto-ajuda. Tudo está contaminado pelo texto ruim e pelo marketing. Chega 2008 e chovem lançamentos sobre cem, duzentos, trezentos anos de tudo o que aconteceu. Dinheiro público cacifa as maiores barbaridades. Você abre livros bem fornidos, luxuosos e não consegue chegar ao fim de uma frase. É tétrico.

Os best-sellers, em sua maioria, douram a pílula amarga da ideologia fascista triunfante e seduzem com suas carcaças milionárias, com a consistência textual do papel crepom. Os neo-romancistas se esmeram em baixarias mais vis, pura apelação comercial, embalados pelo terror da indústria de entretenimento ditada pela era Bush, em que tudo virou assunto dos países baixos (da cintura até os pés) e o pensamento, quando tem vez, é para reiterar posições políticas consagradas. Mas há exceções. Máximo Gorki, por exemplo.

Sim. Podem dizer o que quiserem de Gorki. Que ele passeava com Stalin na sua casa de campo, que foi o fundador ou o guru do realismo socialista e outras coisas. É moda desmerecer o gênio. Deve ser gostoso cagar em cima do talento, senão não haveria tanta gente dedicada a esse ofício. Pois tudo isso não importa. Tudo o que enterra ou celebra Gorki politicamente não passa de firula, lantejoula. O que vale é seu texto, magistral, enxuto, conciso, mortal, deslumbrante principalmente em Infância, lançado o ano passado pela Cosac & Naify, traduzido por Rubens Figueiredo (que fez o prefácio), e com posfácio de Boris Schnaiderman.

Não gosto de fazer resenha. Dou de barato que o leitor deve ter lido ou deveria ler o livro que comento, por isso parto sempre para uma área pessoal, desconhecida, a princípio, até para mim. Essa é a graça do ensaio. Você sabe onde começa, mas não onde termina. Aqui, vou fazer uma exceção. Vou relatar algumas cenas de Infância, para tomar o pulso do que me deslumbrou nos dias mais recentes, em que economizei páginas para espichar a alegria de ler algo realmente importante. Vou evitar ser o chato que conta o filme, mas às vezes não dá para segurar.

A primeira cena do livro é a morte do pai do narrador, que coincide com o nascimento do seu irmão, parido pela mãe de luto e em desespero. Há o funeral paterno (em que Gorki se preocupa com duas rãs que são enterradas junto com o caixão) e a viagem imediata para a cidade natal da mãe. A criança morre e é carregada numa pequena caixa no camarote do vapor que singra o rio Volga. No recinto sinistro, estão a avó, a mãe e ele, o menino Aléksiei, mais tarde “Máximo, o Amargo”. A Rússia gelada e chuvosa, o povo em tremendo sofrimento, a família partida e enlouquecida pelas brigas internas começam então a desfilar no livro onde cada frase é um punhal e cada parágrafo contém a grandeza do humano, desaparecido hoje graças ao trabalho dos medíocres no poder.

Gorki ofereceu livro de contos de estréia para várias editoras e foi recusado por todas. Quando conseguiu publicar, houve um estouro. Tornou-se popular e fez amizade com os maiores escritores da época, como Tchecov e Tolstoi (que coisa essa Rússia incomparável, esse país que nos deu os maiores gênios da literatura, tudo num mesmo espaço de tempo!). Sua infância assustadora e sofrida gerou um suicida, que ao tentar se matar estourou um pulmão, adquirindo então tuberculose, que o perseguiu para o resto da vida. Nas páginas de Infância, vemos como se formou esse caráter onde a inocência duela com a culpa, a vítima dos açoites afia sua capacidade crítica, a travessura prepara a independência e a paisagem hostil inspira um escritor admirável.

A segunda cena impressionante é a morte do ciganinho, agregado que fora encontrado ainda bebê na frente da casa dos avôs de Gorki, e que foi esmagado por uma cruz pesadíssima, quando esta era carregada do quintal para a igreja. A morte coroa uma série de eventos que definem o perfil do cigano e tem o impacto de uma bala perdida. Não sabemos de onde vem. Pois vem desse texto certeiro, esse estopim de chumbo grosso, atirado com fina pontaria.

Todos os personagens são impressionantes. A avó gorda e com imensa cabeleira, ágil como uma gata e que sabia todas as lendas da Rússia de cór. O avô ruivo e horrível, que o açoitava todas as semanas e que o ensinou a ler. A mãe ausente, que o deixou para trás, viúva que casou com um agiota e morreu de fome e desgosto. Os irmãos recém nascidos mortos. O mestre tintureiro cego, que era perseguido pelos tios e primos de Gorki, que deixavam os dedais em brasa para ele se queimar. O químico que foi seu primeiro amigo e que acabou expulso pelo avô. A mãe do padrasto, que se vestia toda de verde e tinha também a cara e os dentes da mesma cor. E assim por diante.

Quando o livro parece ter esgotado sua capacidade de nos surpreender, algumas cenas sobre a adolescência do narrador nos trazem novos personagens igualmente inesquecíveis. O filho do guarda-norturno do cemitério, que fazia parte de uma gang juvenil de ladrões, o filho espancado pela mãe alcóolatra quando não levava alguns copeques para casa, entre outros, empurram o leitor para a situação limite do narrador, testemunha da morte da mãe (que o espancou no dia do desenlace) e da queda financeira de toda a família.

Como pode ter saído, de tanta miséria, um escritor como Gorki? Ele mesmo responde. Diz que é importante escancarar as misérias do povo russo, que assim mesmo consegue emergir com o que há de mais humano, capaz de se superar apesar de tantas dificuldades. Uma lição para nós, tão pessimistas em relação ao país que perde a soberania.

Mas o grande ponto de inflexão na vida de Gorki foi conhecer um professor que prestou atenção no que ele realmente era e que soube relevar seu espírito rebelde de adolescente, concentrando-se no que o garoto tinha de mais significativo. Esse contato com um adulto que o entendeu profundamente mudou sua vida e redirecionou seu rumo. Não fosse esse cruzamento de duas personalidades, a alma indômita e o mestre prudente e sábio, não teríamos talvez o grande escritor que emergiu da Rússia profunda.

Comprem o livro e leiam. Ele faz parte da trilogia autobiográfica do autor (os outros dois títulos são os famosos Ganhando meu pão e Minhas universidades). Depois me digam: isso é ou não literatura, essa arte em desuso, soterrada pela pontificação dos idiotas, que tomam conta de tudo e acham que vão ficar impunes? O tempo, seus pulhas, o tempo vai se encarregar de vocês. Longa vida ao gênio e ao talento.

RETORNO - Duas semanas com comentário zero. O nome deste blog é solidão, apesar das quase 200 visitas únicas diárias.

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