20 de abril de 2008

O CHEIRO DO BRASIL JOGADO FORA


Nei Duclós

O filme nacional “O cheiro do ralo”, dirigido por Heitor Dhalia, que divide com Marçal Aquino o roteiro baseado em livro de Lourenço Mutarell, é sobre o Brasil jogado no lixo. O cenário reproduz uma realidade econômica e social que já passou, fundada na indústria agora obsoleta, nas fábricas que foram para o espaço, no escritório composto de móveis, pisos, paredes e tetos que pertenceram a uma época de costas para o humano. O concreto que cobre todo vestígio de natureza concede apenas um escoadouro de matéria orgânica, de onde sai o fedor de uma civilização perdida.

Muros altos e pôdres, todos pichados, em bairros abandonados, são o cenário de estética monstruosa e coerente, pois as seqüências do filme, somadas, formam uma galeria clássica de uma periferia que foi concebida para a decadência e hoje cumpre seu destino ao abrigar calçadas sujas, corredores escuros, apartamentos sinistros. Essa urbanidade pesada envolve pessoas despossuídas, rostos derrubados, roupas velhas, gestos exaustos. Algo se soma a esse entulho: os princípios morais, os valores, os sentimentos. Os indivíduos cassados de sua cidadania são liberados dos seus compromissos.

O comprador de inutilidades (subprodutos de laços humanos e sociais que se esgarçaram), interpretado por Selton Melo, negocia a dignidade alheia enquanto é tragado pelo esgoto moral de sua vida. Livra-se da noiva e da gentileza profissional para abraçar uma obsessão que aparentemente o liberta do vazio. Apaixonar-se pela bunda de uma garçonete, interpretada por Paula Braun, é a saída que encontra para a falta de sentido de suas rotinas. Mas ele está escaldado: sabe o perigo que corre quando a emoção e a responsabilidade tomam conta. Isso significará laços amorosos, cobranças, sofrimento. Tenta, então, interpor o dinheiro numa relação que perde a graça.

E procura substituir o olhar permanente da consciência por um olho de vidro, comprado na sua loja. Finge que esse olho falso é o do seu pai, a ancestralidade inexistente da orfandade, que não deixou herança. Sozinho no mundo, abandonado pelo Estado e a família, palmilhando ruas excluídas, o personagem se entrega à podridão. Tem motivos de sobra para decair cada vez mais em direção ao ralo: as pessoas do seu entorno estão em piores condições, pois não conseguem o básico para a sobrevivência e chegam para implorar alguns trocos em troca dos últimos resquícios de humanidade que mantiveram (uma caixa de música, uma perna mecânica, um relógio de bolso).

A ética, que é a relação incestuosa entre os sobreviventes e a memória, não vale nada para o negociante frio que se desculpa pelo cheiro ruim que inunda sua loja de badulaques. Sem leis que ordenem o caos de uma economia na miséria, ele é a palavra final, o patrão da humanidade rôta, o legislador com seu cinismo catequista (“a vida é dura”). O filme não mostra o homem do prego revendendo o que compra de maneira tão compulsiva. É um sistema de mão única, em que tudo parte do indivíduo em pânico para a grande cloaca em que se transformou o país.

Quando todas as quinquilharias se esgotam, o devorador de almas compra os corpos disponíveis, oferecidos como último ganho para o único negócio possível dessa realidade terminal. O tumulto, o assassinato, o berreiro são resultados naturais do ódio, do ressentimento, do desamor represados. A merda literalmente transborda e toma conta do chão coalhado de sangue. É o que resta de uma nação perdida, de uma população derrotada, de uma cidade sem abrigo.

O que se salva é o cinema, radicalidade exposta e tratada como comédia, quando, no fundo, é um drama amarelo-marrom que se apega à uma das partes dos corpos retalhados. A admiração pela garçonete é a isca para reacender o coração de pedra, mas a esperança não se consuma. Assumir o cheiro, comprar o amor e o sexo, inventar uma ascendência são gestos da maldade insuportável e desesperada. Quando enfim o protagonista encontra e adquire o objeto de desejo, é eliminado pelo que cevou na vida bandida, de onde não teve chance de escapar.

RETORNO - Imagem de hoje: Paula Braun, de frente, e Selton Melo, de costas, em "O cheiro do ralo", que está nas locadoras.

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