15 de abril de 2008

OS CONSULTORES


Nei Duclós (*)

Virou lei. Todos têm algo a dizer. Nem é preciso fazer nada, basta aparecer em frente a alguém para lá vir o dedo em riste, advertindo sobre algo necessário e fundamental. Tendo a moral abandonado a vida pública, os valores foram privatizados. Pertencem a qualquer um que se arvore a pastorear o bruto rebanho de infiéis que existem ao redor. Nesse gado, se sobressai o indivíduo sem fórum, o que guarda ressentimento e acaba se transformando em mais um moralista de ocasião.

O que impressiona é a sobrevivência de antigos vícios, que jamais sucumbem diante da pretensa evolução do mundo. A certeza de que as crianças estão sempre erradas e merecem ser corrigidas pelo zelo opressivo dos adultos é uma delas. A infância é um conjunto de erros. Espontaneidade é malcriação, insistência merece uns cascudos, gritos uns tapas, palavrão castigo. Amparados pelo tamanho, as pessoas gostam de sentar em cima dos petizes os tabefes de palavras desagradáveis.

Outra sobrevivência é a moral religiosa, esse verniz esperto que cobre a rugosidade do egoísmo. “Venha cá que vou ler uma mensagem para você”, dizem os sátrapas da correção impoluta. E lá vem os conselhos de melhor viver, como abandonar essa vida pagã onde você está metido, e como devemos nos comportar diante do olho clínico dos devotos, sempre de cabeça levantada e exibindo a testa como um farol a iluminar a paisagem.

Mas existe ainda a consultoria sobre o comportamento pessoal e profissional, as lições fundadas nos provérbios importados e adaptados à sabedoria milenar das superfícies milimétricas. Da anedota pulamos para as “dizidas”, que não admitem contestação. Sobram pílulas douradas do aconselhamento, enquanto todo mundo se locupleta. O pecado que é viver no ambiente imperial da especulação, corrupção, violência e exploração pura e simples jamais é expiado.

A indignação é moeda corrente que compra qualquer tipo de solução para os males do mundo. O bom-mocismo, essa falta de caráter vestida para a missa, hoje movimenta milhões em reclames e eventos. No fundo, todos querem a salvação da humanidade, mas tudo fazem para que o planeta se exploda, desde que o saldo bancário esteja garantido.

É um mistério que existam platéias gigantescas para tanta enganação. A fome de ética acaba gerando um fast-food de falsas vantagens espirituais. Os profetas da nova ordem não só enriquecem como chegam à idade provecta sem que ninguém os combata. Parece que encarnam um novo poder, ditado talvez pela mão pesada da tirania que governa de fato as nações em frangalhos. Os países caiados para aparecer em horário nobre são manipulados por interesses que foram muito além do velho imperialismo.

O domínio hoje se faz dentro da cidadania de espírito desarmado. É lá que os artífices do mando brincam de compor miniaturas de navios em garrafas foscas. As vítimas carregam uma frota de falsos ensinamentos, mas não há nenhum mar para singrar. O que existe é o abismo para onde rolam os sonhos, os paredões que impedem o livre pensamento, a ignorância em corações transformados em pedra. O mundo perdeu a guerra, depois de perder todas as batalhas. Vivemos nas catacumbas iluminadas pelo brilho falso da virgindade moral.

Mas esse sistema faz água o tempo todo. Esqueceram de desinventar a alma, território incorruptível de um criador que jamais nos abandona. Alma, por ser eterna, dispensa a auto-ajuda.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 15 de abril de 2008, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: o dedo em riste na cara da cidadania - a falsa moral convoca para o morticínio.

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