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30 de abril de 2008

NEM PENSAR


Nei Duclós (*)

Produzir pensamento é ofício raro. Ainda reiteramos idéias de milhares de anos atrás e devemos agradecer por isso, pois as mais recentes (de alguns séculos) nos deixam de cabelo em pé. Átomo, idéia, república são conceitos milenares que fazem parte da nossa natureza. Já capitalismo, fundamentalismo, bigbrother são emergentes, adotados como definitivos, mas como os terremotos, devem passar, mesmo que persista o estrago que provocam.

O pensamento inspirou tiranias até se voltar contra elas. Mas isso acabou criando novas formas de opressão. Como houve um impasse - dinheiro triunfante de um lado, miséria global do outro; Berlusconi caindo de pára-quedas, bandeiras vermelhas sumindo por trás do armário - a solução encontrada pelos poderes foi melhorar a pizza.

Há uma série de ingredientes para tornar digerível a lei que proíbe pensar em mudanças radicais da realidade. Não há como derrubar o sistema que substitui comida por cana, ou convence poupadores sobre crédito imobiliário pôdre. Já que não há saída, são enviados em nosso socorro pensamentos sob medida, que devem preencher todos os compartimentos do cérebro. Lembro de um episódio de Married with children, a série demolidora dos anos 90, em que a garota não poderia colocar uma idéia nova na cabeça sem que uma idéia velha não saísse pelo ouvido.

É onde hoje nos encontramos. No Brasil, ganhou contornos sinistros. Não faça crítica de nenhuma espécie, senão suas palavras serão colocadas nos nichos ditos ideológicos das campanhas eleitorais. Você é, obrigatoriamente, contra ou a favor de uma das forças políticas que se digladiam. Qualquer esforço para sair da reta cai no deboche. A palavra “alternativa” acabou sendo devorada pela tempestade ideológica do Mesmo, entronizado como única verdade.

Do que estou falando? “Hello!” diz a expressão da moda, que significa: não saia dos trilhos, acorde para o que nos é imposto. Tudo já foi pensado antes, basta você escolher o paper encomendado, o livro pornô de memórias, o programa cacifado pelo governo, o blockbuster, o projeto sobre a prospecção de óleo sujo e obsoleto sob o manto azul do Atlântico, o anacronismo em tom de profecia, que está tudo lá. É por isso que a palavra de ordem “nem pensar” ocupou o lugar das lutas pela liberdade.

Esse expediente não está restrito aos tempos contemporâneos. A História é adaptada por força do revisionismo, que impera em todas as mídias. Uma das tendências é desmoralizar os gênios (a pessoa que mudou o mundo fatalmente tinha um esqueleto no armário). Outra é justificar grandes crimes, para que os atuais não soem tão desproporcionados. “Desde que o mundo é mundo” é o pensamento que entroniza o obscurantismo, pois tenta nos convencer de um crime: a de que nada ameaça o direito de posse de latifúndios do tamanho da Ásia, ou algo semelhante.

De mãos atadas, nos refugiamos em pensadores exemplares. Os melhores estão na literatura. Máximo Gorki, por exemplo, nos deslumbra com seu livro Infância (edição da Cosac & Naif), onde uma família recém saída da servidão usa o açoite no ambiente doméstico.

O espírito humano, segundo o sólido e rigoroso exercício do talento em Gorki, a tudo sobrevive. Desde que sua experiência o ilumine, por mais terrível que tenha sido. Desde que não jogue no lixo, por submissão ou ignorância, a herança de seus ancestrais. Ou faça dela insumo para reforçar a barbárie.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada dia 29 de abril de 2008 no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: Christina Applegate em "Married with children".

26 de abril de 2008

CENAS INESQUECÍVEIS


Nei Duclós (*)

Na multidão do metrô, alguém me cumprimenta com entusiasmo. O rosto é familiar, mas não atino quem seja. Retribuo, meio sem jeito, o que é imediatamente percebido. No dia seguinte, quando vejo a mesma pessoa me dando o troco do cafezinho, que costumo tomar sempre no mesmo lugar, vislumbro o tamanho da gafe.

Eu identificava o caixa com o ambiente onde ele se situava, e quando encontrei o mesmo sorriso num espaço urbano diferente, deslocado da minha percepção habitual, não reconheci. A sorte é que não houve ressentimento. O amigo da cafeteria entendeu perfeitamente. Não por gentileza profissional, mas pelo esforço de tornar prazeroso o momento em que costumávamos encerrar o intervalo do dia. Por distração ou por força de hábito, eu perdia a chance de me comportar à altura da qualidade pessoal que me cercava.

Esse crime tem uma causa. Atulhadas de imagens, nossas mentes selecionam o básico para a sobrevivência. Formatamos uma rotina compatível com nossas condições cardiovasculares. O olho é traiçoeiro e só enxerga o que está acostumado a ver. É por isso que alguns cineastas, sabedores desse vício, conseguiram criar imagens de impacto usando uma cena familiar instalada num entorno diferente. É clássica a imagem da Estátua da Liberdade semi-enterrada na areia, no primeiro “Planeta dos Macacos”.

É impossível esquecer Charlton Heston, que se foi recentemente, levando consigo o segredo de encarnar personalidades históricas à altura da grandeza com que são lembradas. Ao se ajoelhar diante do símbolo de uma civilização que se auto-destruiu, o ator inesquecível nos transportou para o horror do remorso. As ruínas de algo muito próximo, que se misturam à paisagem de uma praia perdida, assombram a cultura visual da nossa época. É assim com inúmeros outros exemplos.

O assassinato de Janeth Leigh no momento do banho em “Psicose” se transformou num paradigma. Nada mais trivial do que uma ducha, um corpo visto por detrás da cortina, cabelos molhados, gotas escorrendo pelo corpo. A ação do assassino que ninguém vê, a montagem que retalha a mulher junto com a faca, os gritos, a música, intensificam até a demência o que deveria ser corriqueiro. Depois dessa cena, o suspense e o terror jamais foram os mesmos. Hitchcock e sua equipe nos assustaram ao mudar a natureza do olhar. Espiar mulher no chuveiro deixou de ser um expediente meramente erótico. Virou atentado.

Mas não só de sustos vivem as imagens poderosas. Marlene Dietrich sentada no banquinho em “O anjo azul”, ou Marilyn Monroe esvoaçando sua saia branca no vento encanado do metrô em “O pecado mora ao lado”, participam desse deslocamento do familiar para o insólito. O truque é fazer com o que o ato banal de sentar aconteça no palco de um cabaré, com a protagonista usando uma roupa que despe o olhar dos espectadores. Ou usar a obviedade do vento gerado pelo movimento dos vagões para arejar o desejo exposto da diva.

Não só o cinema cria impacto visual. O jornalismo também deixa suas marcas, que definem nossa época. Os aviões mergulhando na presença “natural” das Torres Gêmeas, a forma corriqueira do cogumelo identificando o pesadelo nuclear, as feridas de napalm na infância vietnamita em pânico, são imagens que encheram nossas retinas de assombro. Serão lembradas muito tempo depois que formos embora.

Poderão perguntar o que não conseguimos esquecer fora dessa indústria visual que nos cerca. Eu selecionaria algumas lembranças: Porto Alegre vista no crepúsculo quando eu voltava do pampa para decidir o rumo da minha vida; a mãe fingindo que varria a calçada quando eu chegava de viagem para avisá-la que abraçaria o jornalismo; o pai, que daria um pulo na cidade, depositando um revólver 38 em cima da mesinha de madeira do acampamento, e recomendando que mandasse bala em quem invadisse nossos redutos sem convite; São Paulo em abril, vestida de ouro da luz da tarde quando lá estive pela primeira vez; o mar visto da saída do túnel no Rio de Janeiro; as gaivotas sobrevoando o centro de Florianópolis antes do aterro.

Tudo isso faz parte de um acervo pessoal de impacto, em que momentos muito próximos e banais se transformam na síntese de mistérios: a vida como um presente, a memória como um sonho eterno.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada neste fim-se-semana na revista Donna DC, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: todo mundo conhece. O bom para o mito Marilyn (não para a pessoa) é que bateram nela muito cedo. Com o tempo, ficou imune aos ataques. A diva está, portanto, acima da atual tendência de desmoralizar o talento. Ela cresce a cada ano que passa. 3. E você, qual sua cena inesquecível?

MUDAMOS COM A INTERNET


Vi um filme ontem em que o diretor fala em 2003 como se fosse 1930. Ele fez tudo para “reconstituir a época”, comprou móveis do período tão distante, reproduziu fielmente o cenário que tinha sumido para sempre, recuperou o clima perdido. É de enlouquecer. Todo mundo sabe que 2003 ainda está por vir, que história é essa? Quer dizer que passamos do ano 3.000 e não me avisaram? Vivemos num período nebuloso de tempo, além do futuro, longe demais para ser verdade, em que nem nos damos conta o quanto mudamos. Somos outras pessoas depois que passou a “febre” da internet e hoje a conexão global já faz parte da natureza.

No início, éramos seres culturais formados em outra realidade que experimentavam algo novo e radical. Isso já passou. Hoje somos parte da matrix, abandonamos a casca do que nos formou. O que era deslumbramento virou rotina e indiferença. Criamos hábitos diversos. Perdemos a curiosidade em relação ao que é produzido massivamente. Dos trilhões de blogs e sites selecionamos algo para continuarmos em frente, pisando em ovos, os bites e bytes, palavras que já soam obsoletas, como tudo. Conseguimos o improvável: tornar tudo passado antes de tocarmos os minutos que vivemos.

A prisão do eterno presente também não importa. Experimentamos algo tão bizarro quanto o final de 2001, de Kubrick. Cruzamos a barreira lisérgica dos corredores virtuais mutantes e nos defrontamos com uma cena que parece familiar: ocupando a sala branca com móveis fake da aristocracia perdida, nos vemos com mil anos e idade. Comer algo em meio à iluminação ao mesmo tempo louca e cool, nos arrastando pesadamente para uma cama onde veremos o feto espacial, eis nossa sina nesta altura do campeonato. Talvez seja véspera de um despertar, ou pior, talvez seja esse o clima que vivenciamos eternamente, mas só agora isso ficou claro para nós.

À parte essas viagens na maionese, nossos contemporâneos seguem em frente, produzindo de tudo, trabalhando sem parar, e fazendo girar a roda infinita das mudanças. Nem devemos nos atrever a assimilar essa roda gigante, esse carrossel de espanto. Precisamos, sim, ligar o desconfiômetro e tentar descobrir o que se passa sob a superfície da modorra e da falta de juízo. As lições despencam das prateleiras do tempo. Livro, filme, site, blog. Viagem, varanda, sono, sonho. Podemos destrinchar uma parte do enigma, pois essa é a missão, tentar saber o que se passa, antes que o milênio vá para os ares.

Pacote de filmes de Glauber Rocha está sendo lançado. A América latina muda com seus presidentes inquietos. Estudos projetam cenários para a mídia no futuro. Quantos filmes foram feitos em 2007? Só eu vi uns 500. Deve ter mais. Sabe aquele projeto que não saiu da sua cabeça por vinte anos? Já aconteceu de inúmeras maneiras, muita gente está revisitando essa idéia, virou cult. E você passou, graças a Deus, enjeitado e perto da vida selvagem posta de lado. É o que resta de real neste mundo de fantasmagorias: a tua posição serena em meio à tempestade. Tua vida única, que ficará guardada na memória do tempo e será esquecida antes que digas amém.

2003, 4, 5, 6, 7 já passaram? Assustador: nem doeu.

RETORNO - Imagem de hoje: Keir Dullea no bizarro final de 2001, de Kubrick. Mas o filme que vi ontem foi outro: Lucky You, ou Bem-vindo ao jogo, de Curtis Hanson, roteiro de Eric Roth, muito bom, sobre as transformações sofridas no mundo do pôquer, que extrapolou os cassinos, chegou até a televisão e internet e revelou uma série de personalidades novas e antigas, que estavam na sombra e hoje gozam das vantagens da celebridade.

25 de abril de 2008

MÁXIMO GORKI: CENAS DE “INFÂNCIA”


O mar da mediocridade tomou conta das livrarias, e não é apenas auto-ajuda. Tudo está contaminado pelo texto ruim e pelo marketing. Chega 2008 e chovem lançamentos sobre cem, duzentos, trezentos anos de tudo o que aconteceu. Dinheiro público cacifa as maiores barbaridades. Você abre livros bem fornidos, luxuosos e não consegue chegar ao fim de uma frase. É tétrico.

Os best-sellers, em sua maioria, douram a pílula amarga da ideologia fascista triunfante e seduzem com suas carcaças milionárias, com a consistência textual do papel crepom. Os neo-romancistas se esmeram em baixarias mais vis, pura apelação comercial, embalados pelo terror da indústria de entretenimento ditada pela era Bush, em que tudo virou assunto dos países baixos (da cintura até os pés) e o pensamento, quando tem vez, é para reiterar posições políticas consagradas. Mas há exceções. Máximo Gorki, por exemplo.

Sim. Podem dizer o que quiserem de Gorki. Que ele passeava com Stalin na sua casa de campo, que foi o fundador ou o guru do realismo socialista e outras coisas. É moda desmerecer o gênio. Deve ser gostoso cagar em cima do talento, senão não haveria tanta gente dedicada a esse ofício. Pois tudo isso não importa. Tudo o que enterra ou celebra Gorki politicamente não passa de firula, lantejoula. O que vale é seu texto, magistral, enxuto, conciso, mortal, deslumbrante principalmente em Infância, lançado o ano passado pela Cosac & Naify, traduzido por Rubens Figueiredo (que fez o prefácio), e com posfácio de Boris Schnaiderman.

Não gosto de fazer resenha. Dou de barato que o leitor deve ter lido ou deveria ler o livro que comento, por isso parto sempre para uma área pessoal, desconhecida, a princípio, até para mim. Essa é a graça do ensaio. Você sabe onde começa, mas não onde termina. Aqui, vou fazer uma exceção. Vou relatar algumas cenas de Infância, para tomar o pulso do que me deslumbrou nos dias mais recentes, em que economizei páginas para espichar a alegria de ler algo realmente importante. Vou evitar ser o chato que conta o filme, mas às vezes não dá para segurar.

A primeira cena do livro é a morte do pai do narrador, que coincide com o nascimento do seu irmão, parido pela mãe de luto e em desespero. Há o funeral paterno (em que Gorki se preocupa com duas rãs que são enterradas junto com o caixão) e a viagem imediata para a cidade natal da mãe. A criança morre e é carregada numa pequena caixa no camarote do vapor que singra o rio Volga. No recinto sinistro, estão a avó, a mãe e ele, o menino Aléksiei, mais tarde “Máximo, o Amargo”. A Rússia gelada e chuvosa, o povo em tremendo sofrimento, a família partida e enlouquecida pelas brigas internas começam então a desfilar no livro onde cada frase é um punhal e cada parágrafo contém a grandeza do humano, desaparecido hoje graças ao trabalho dos medíocres no poder.

Gorki ofereceu livro de contos de estréia para várias editoras e foi recusado por todas. Quando conseguiu publicar, houve um estouro. Tornou-se popular e fez amizade com os maiores escritores da época, como Tchecov e Tolstoi (que coisa essa Rússia incomparável, esse país que nos deu os maiores gênios da literatura, tudo num mesmo espaço de tempo!). Sua infância assustadora e sofrida gerou um suicida, que ao tentar se matar estourou um pulmão, adquirindo então tuberculose, que o perseguiu para o resto da vida. Nas páginas de Infância, vemos como se formou esse caráter onde a inocência duela com a culpa, a vítima dos açoites afia sua capacidade crítica, a travessura prepara a independência e a paisagem hostil inspira um escritor admirável.

A segunda cena impressionante é a morte do ciganinho, agregado que fora encontrado ainda bebê na frente da casa dos avôs de Gorki, e que foi esmagado por uma cruz pesadíssima, quando esta era carregada do quintal para a igreja. A morte coroa uma série de eventos que definem o perfil do cigano e tem o impacto de uma bala perdida. Não sabemos de onde vem. Pois vem desse texto certeiro, esse estopim de chumbo grosso, atirado com fina pontaria.

Todos os personagens são impressionantes. A avó gorda e com imensa cabeleira, ágil como uma gata e que sabia todas as lendas da Rússia de cór. O avô ruivo e horrível, que o açoitava todas as semanas e que o ensinou a ler. A mãe ausente, que o deixou para trás, viúva que casou com um agiota e morreu de fome e desgosto. Os irmãos recém nascidos mortos. O mestre tintureiro cego, que era perseguido pelos tios e primos de Gorki, que deixavam os dedais em brasa para ele se queimar. O químico que foi seu primeiro amigo e que acabou expulso pelo avô. A mãe do padrasto, que se vestia toda de verde e tinha também a cara e os dentes da mesma cor. E assim por diante.

Quando o livro parece ter esgotado sua capacidade de nos surpreender, algumas cenas sobre a adolescência do narrador nos trazem novos personagens igualmente inesquecíveis. O filho do guarda-norturno do cemitério, que fazia parte de uma gang juvenil de ladrões, o filho espancado pela mãe alcóolatra quando não levava alguns copeques para casa, entre outros, empurram o leitor para a situação limite do narrador, testemunha da morte da mãe (que o espancou no dia do desenlace) e da queda financeira de toda a família.

Como pode ter saído, de tanta miséria, um escritor como Gorki? Ele mesmo responde. Diz que é importante escancarar as misérias do povo russo, que assim mesmo consegue emergir com o que há de mais humano, capaz de se superar apesar de tantas dificuldades. Uma lição para nós, tão pessimistas em relação ao país que perde a soberania.

Mas o grande ponto de inflexão na vida de Gorki foi conhecer um professor que prestou atenção no que ele realmente era e que soube relevar seu espírito rebelde de adolescente, concentrando-se no que o garoto tinha de mais significativo. Esse contato com um adulto que o entendeu profundamente mudou sua vida e redirecionou seu rumo. Não fosse esse cruzamento de duas personalidades, a alma indômita e o mestre prudente e sábio, não teríamos talvez o grande escritor que emergiu da Rússia profunda.

Comprem o livro e leiam. Ele faz parte da trilogia autobiográfica do autor (os outros dois títulos são os famosos Ganhando meu pão e Minhas universidades). Depois me digam: isso é ou não literatura, essa arte em desuso, soterrada pela pontificação dos idiotas, que tomam conta de tudo e acham que vão ficar impunes? O tempo, seus pulhas, o tempo vai se encarregar de vocês. Longa vida ao gênio e ao talento.

RETORNO - Duas semanas com comentário zero. O nome deste blog é solidão, apesar das quase 200 visitas únicas diárias.

23 de abril de 2008

O TERREMOTO CHINÊS


Vou comprar um teclado, exijo fabricação brasileira e o balconista, exultante, me mostra um exemplar raro da indústria nacional. Era o que estava escrito num adesivo na embalagem. Abrimos o pacote e vejo, na base do produto, o fatal made in China. Brasileiro quer dizer chinês, entende?

Tem o mesmo efeito do terremoto. Você sente que uma vibração poderosa está passando por você. Provoca tonturas, sensação de labirintite. Você jura que está passando mal, que a culpa é sua, é algo interno. Mas aí você vê os objetos tremerem, as janelas, as panelas, as louças, as portas, as paredes e teto o passando pela mesma coisa. A China tomou conta de tudo. Fabrica desde brinquedinho de plástico até computador. O Brasil acabou.

Isso não impede que admiremos o cinema chinês. Vio ontem “Assembélia", o primeiro filme de Guerra de Feng Xiaogang. Metade é um blockbuster, com pedaços de soldados voando na tela. Mas a segunda metade é impressionante. Veterano vai em busca dos vestígios do seu batalhão, dado como inexistente, já que foi totalmente destruído. Único sobrevivente, ele tenta escavar uma montanha de carvão para resgatar os corpos e provar que não estava mentindo quando foi capturado pelas forças do seu exército.

Há uma cena antológica, que mostra a determinação dos chineses. Não é por nada que eles dominam tudo hoje. O veterano acha o túmulo do capitão que o usou como bucha de canhão, sacrificando seus camaradas para beneficiar sua fuga. O túmulo é guardado pelo corneteiro, que é também o guarda-costas do defunto. Ao saber que foi traído, o veterano tenta agredir o memorial, mas é impedido pelo outro que em vida sempre protegeu seu comandante. Ele está morto, mas eu continuo aqui, de guarda. Nem tente se vingar, diz.

Logo em seguida, há uma cena tocante de perdão. O ex-soldado, inutilizado por uma mina, ajoelha-se diante do seu traidor e o perdoa. Na mesma cena, o ódio e o perdão, tudo em função de um projeto nacional. Lutaram pela China, deram a vida pela nação. São fiéis e unidos até depois de mortos.

Vai meter com um povo desses. Tentem tomar-lhes o Tibete. Ou fazê-los desistir de Taiwan. Ou abdicar da posição hegemônica que ocupam hoje, graça à omissão das outras nações, como a nossa, e à mão-de-obra que dizem ser escrava, mas é apenas chinesa, ou seja, totalmente integrada nesse projeto nacional. Nunca vão desistir. De cada cinco habitantes do mundo, um é chinês.

Isso não significa que eles ficarão assim para sempre. Em algum momento, a soberania dos países vai dar um chega para lá. Restarão montanhas de quinquilharias industriais jogadas fora e alguns filmes muito bons, como Assembléia.

22 de abril de 2008

ACIMA DAS ÁGUAS


Nei Duclós (*)

Idéias fixas jamais cedem. Uma é a de que o Sul precisa ser um país à parte, já que o resto do Brasil não teve a “sorte” de ser colonizado por povos considerados mais nobres. Ou que devemos prestar tributo apenas aos ascendentes europeus, esquecendo os índios, que ensinaram a sobrevivência aos invasores, e com eles se confundiram, como notam Sérgio Buarque de Holanda e Darcy Ribeiro.

Um dia reagi às queixas dos paulistas sobre os nordestinos. Um empresário em Piracicaba colocava a causa de todos os males nas pessoas vindas de fora para trabalhar na construção civil. Agora elas roubam, matam e vivem nas favelas que antes não existiam, dizia o empresário. Perguntei: vieram de livre espontânea vontade? Por que acorreram em massa para cá? Não, foram chamados e conduzidos até o canteiro de obras.

Teria havido algum planejamento para aqueles trabalhadores? Uma agenda social e econômica para absorver os novos contingentes? Respondeu também que não. Você queria então que eles simplesmente voltassem? No momento em que o lugar lhes vira as costas, a responsabilidade não deveria ser repartida?

O hábito de culpar os adventícios faz parte do obscurantismo e está mais presente do que nunca. Vimos em “Zorba, o Grego”, o clássico de Michael Cacoyannis, como as pessoas da ilha de Creta se justificavam ao pilhar os pertences da francesa moribunda. Ela não era “daqui”, diziam, e os bens ficariam nas mãos do governo. Isso seria uma injustiça, pois os habitantes do lugar eram pobres e precisavam do saque. A xenofobia pode levar ao crime se ninguém despertar a tempo para o perigo.

As idéias fixas tornam nebulosa a percepção sobre eventos importantes. Abandoná-las pode gerar boas surpresas. Guga, por exemplo, que encerra sua carreira brilhante, oferece uma boa oportunidade de exercermos a liberdade do olhar. Sem tirar o mérito de que ele é soma e síntese da cidade que o gerou, Guga pode ser identificado com o fim do isolamento de Florianópolis e a inauguração de uma outra realidade. Tudo mudou depois que Guga ganhou o primeiro Garros. E mudou para sempre e de forma radical agora que ele abandona oficialmente as quadras.

Sua missão extrapola a afirmação dos limites que o geraram. É, antes, uma superação. Guga é ponte entre ilha e continente, é o amor por este lugar, para onde vieram todos, prisioneiros do encantamento da paisagem e do povo, e do seu arauto de raquete em punho. Esse amor ajudou a transformar Desterro e a lança para o futuro. Mais gente, novas soluções, talvez até a implantação dos velozes Trams, os bondes super modernos, que correm velozes pelas ruas de Amsterdam.

Não há motivos para achar que cada recanto deva impor suas qualidades por exclusão. Ninguém é melhor por motivo de raça ou origem, mas todos são ótimos por pertencerem a um projeto maior, complicado, contraditório e por isso mesmo gratificante. O que importa é se situar acima das divisões internas. Kirk Douglas chamava-se Issur Danielovitch Demsky. Era o mais americano dos atores. Aqui, 200 anos de permanência no país não bastam. Quantos séculos ainda são necessários para assumir a “nova” nacionalidade?

Tenha olho puxado, cabelo preto ou cor de cenoura, qualquer indivíduo do país, que vai para o Exterior, é identificado logo. É o jeito de andar, de falar, de viver. É isso o que somos, brasileiros. Puríssimos, como o sorriso de Guga, que navega acima de todas as águas.

RETORNO - (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 22 de abril de 2008, no caderno Variedades do Diário Catarinense.

21 de abril de 2008

FORAM ELES


Feriadão besta? Então assista o documentário que desmascara o 11 de setembro de 2001. O atentado teria sido idealizado com um novo Pearl Harbour para galvanizar a opinião pública e mudar o rumo da política americana em direção à ditadura.

Nesse festival de horrores, um míssil teria atingido o Pentágono e não um Boeing; os aviões que bateram nas torres gêmeas eram teleguiados e não tinham janelas de passageiros; o dono do WTC fez um seguro bilionário dias antes da tragédia; o programa de aviões teleguiados tem um histórico razoável nas FFAAs dos EUA; McNamara e John Kennedy receberam em 1962 um projeto sobre a possibilidade de desencadear uma onda de atentados em Guantânamo para justificar uma invasão a Cuba. Por dedução, o grande jornalista Hunter Thompson, que estava pesquisando o 11/09, foi de repente "suicidado".

Descubro, arrasado, que as evidências não servem para transformar nada. As idéias fixas precisam cumprir integralmente sua missão, esgotar todos os cartuchos para só depois a verdade ou parte dela vir à tona. Só agora o cinema está lançando dúvidas sobre a campanha anti-terrorista, que nada mais foi do que um instrumento de tirania global por parte do império americano. Daqui a pouco vão fazer ficção sobre os atentados que beneficiaram a gestão Bush, o maior desastre político da História.

Mas aí será tarde demais. O estrago já foi feito. Perdemos grande parte de nossas vidas. Eles fazem tudo para compartilhar o inferno que criaram. Os franceses, logo depois do 11 de setembro, já tinham alertado sobre a armação, mas ninguém deu ouvidos. Ficaram todos enrolados na bandeirinha estrelada. Justificaram a invasão do Iraque, guerra para proteger o petróleo da família Bush. O que nos resta diante de tanto poder? Apenas a palavra. A linguagem é a única arma que dispomos.

É por isso que há uma blitz permanente, que usa a palavra, a mídia, a linguagem, para fazer da mentira, verdade. O argumento mais pernicioso é o deboche contra a chamada "teoria da conspiração". Para você ser moderno, ultra, super, plus e a coisinha fofa do papai, precisa deixar de lado essas coisas como a paranóia de que a CIA, o FBI o Pentágono estão por trás de tudo. O certo é acreditar que o protegido da gestão Bush, Osama Bin Laden, é mesmo o terrorista tenebroso que pregam (é, mas por motivos opostos). O cara que vive enfiado num buraco no deserto, doente, poderia desencadear uma operação tão complexa?

É tão violenta a verdade que emerge do documentário, que ficamos sabendo que só o incêndio provocado pelos aviões não teriam capacidade de derrubar as torres. Assim como huve uma série de explosões no Pentágono, também em Nova York teria havido uma sucessão de petardos detonados a distância. Pois prédios não caem com incêndios.

Nem vou comentar mais nada. Vejam o documentário.

RETORNO - 1. O poeta Ricardo Silvestrin escreve sobre minha poesia. Lá vai:

"Nei Duclós, ele está no meio de nós

RETÂNGULO

(Nei Duclós)

Tem pessoas que me estreitam
tem pessoas que me largam
tem gente que me violenta
tem gente que me guarda

Mas a maior parte do tempo
estou só, estou sem nada

Contundência. Essa é a marca da poesia de Nei Duclós. Versos como o que perdi não devolvem, mas vou buscar com revólver - pra lembrar de outro poema forte dele. Há um ar de quase desespero, mas a lucidez e o espanto tratam de equilibrar o jogo. É um poeta que dá a real. A vida não é nenhuma maravilha, é o que se conclui depois da leitura. Mas a sua poesia é."

2. A notícia não é nova, mas é bom lembrar. Para quem treme de emoção diante de Lula e celebra, com sua pena, o sucesso que o presidente traidor faz ao aparecer na frente do povo iludido, vamos ao seguinte:

"No Palácio do Planalto existem três caixas eletrônicos do Banco do Brasil. Ali e em máquinas conveniadas espalhadas por Brasília e pelo País, várias vezes ao dia, dez ordenadores de despesas, chamados de ecônomos, fazem saques em dinheiro vivo com o cartão corporativo do governo a fim de cobrir as necessidades pessoais e de rotina do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, da primeira-dama Marisa Letícia e do restrito staff que os cerca. Segundo levantamento exclusivo feito para ISTOÉ pelo site CONTAS ABERTAS junto ao Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal (Siaf), os saques na boca do caixa apenas para servirem Lula, Marisa e suas equipes somaram R$ 5,8 milhões, entre 1º de janeiro de 2003 e 31 de janeiro de 2008, o equivalente a R$ 97 mil por mês."

20 de abril de 2008

O CHEIRO DO BRASIL JOGADO FORA


Nei Duclós

O filme nacional “O cheiro do ralo”, dirigido por Heitor Dhalia, que divide com Marçal Aquino o roteiro baseado em livro de Lourenço Mutarell, é sobre o Brasil jogado no lixo. O cenário reproduz uma realidade econômica e social que já passou, fundada na indústria agora obsoleta, nas fábricas que foram para o espaço, no escritório composto de móveis, pisos, paredes e tetos que pertenceram a uma época de costas para o humano. O concreto que cobre todo vestígio de natureza concede apenas um escoadouro de matéria orgânica, de onde sai o fedor de uma civilização perdida.

Muros altos e pôdres, todos pichados, em bairros abandonados, são o cenário de estética monstruosa e coerente, pois as seqüências do filme, somadas, formam uma galeria clássica de uma periferia que foi concebida para a decadência e hoje cumpre seu destino ao abrigar calçadas sujas, corredores escuros, apartamentos sinistros. Essa urbanidade pesada envolve pessoas despossuídas, rostos derrubados, roupas velhas, gestos exaustos. Algo se soma a esse entulho: os princípios morais, os valores, os sentimentos. Os indivíduos cassados de sua cidadania são liberados dos seus compromissos.

O comprador de inutilidades (subprodutos de laços humanos e sociais que se esgarçaram), interpretado por Selton Melo, negocia a dignidade alheia enquanto é tragado pelo esgoto moral de sua vida. Livra-se da noiva e da gentileza profissional para abraçar uma obsessão que aparentemente o liberta do vazio. Apaixonar-se pela bunda de uma garçonete, interpretada por Paula Braun, é a saída que encontra para a falta de sentido de suas rotinas. Mas ele está escaldado: sabe o perigo que corre quando a emoção e a responsabilidade tomam conta. Isso significará laços amorosos, cobranças, sofrimento. Tenta, então, interpor o dinheiro numa relação que perde a graça.

E procura substituir o olhar permanente da consciência por um olho de vidro, comprado na sua loja. Finge que esse olho falso é o do seu pai, a ancestralidade inexistente da orfandade, que não deixou herança. Sozinho no mundo, abandonado pelo Estado e a família, palmilhando ruas excluídas, o personagem se entrega à podridão. Tem motivos de sobra para decair cada vez mais em direção ao ralo: as pessoas do seu entorno estão em piores condições, pois não conseguem o básico para a sobrevivência e chegam para implorar alguns trocos em troca dos últimos resquícios de humanidade que mantiveram (uma caixa de música, uma perna mecânica, um relógio de bolso).

A ética, que é a relação incestuosa entre os sobreviventes e a memória, não vale nada para o negociante frio que se desculpa pelo cheiro ruim que inunda sua loja de badulaques. Sem leis que ordenem o caos de uma economia na miséria, ele é a palavra final, o patrão da humanidade rôta, o legislador com seu cinismo catequista (“a vida é dura”). O filme não mostra o homem do prego revendendo o que compra de maneira tão compulsiva. É um sistema de mão única, em que tudo parte do indivíduo em pânico para a grande cloaca em que se transformou o país.

Quando todas as quinquilharias se esgotam, o devorador de almas compra os corpos disponíveis, oferecidos como último ganho para o único negócio possível dessa realidade terminal. O tumulto, o assassinato, o berreiro são resultados naturais do ódio, do ressentimento, do desamor represados. A merda literalmente transborda e toma conta do chão coalhado de sangue. É o que resta de uma nação perdida, de uma população derrotada, de uma cidade sem abrigo.

O que se salva é o cinema, radicalidade exposta e tratada como comédia, quando, no fundo, é um drama amarelo-marrom que se apega à uma das partes dos corpos retalhados. A admiração pela garçonete é a isca para reacender o coração de pedra, mas a esperança não se consuma. Assumir o cheiro, comprar o amor e o sexo, inventar uma ascendência são gestos da maldade insuportável e desesperada. Quando enfim o protagonista encontra e adquire o objeto de desejo, é eliminado pelo que cevou na vida bandida, de onde não teve chance de escapar.

RETORNO - Imagem de hoje: Paula Braun, de frente, e Selton Melo, de costas, em "O cheiro do ralo", que está nas locadoras.

19 de abril de 2008

BILL E BOBBY



João Luis Fragoso, da UFRJ, está certo quando combate a visão reducionista da História brasileira, mas erra quando coloca, mesmo sem querer, sua brilhante tese (em que desloca o foco da posição do Brasil, que passa de vítima para protagonista) a serviço da política. Fazer o país arrostar suas próprias façanhas, sem colocar a culpa nos outros, não pode significar colocar nos ombros da cidadania todos os erros da ditadura, como acontece hoje. "Votou neles? arroste": esse é um raciocínio que não se sustenta, já que o sistema político está cristalizado e só se vota em que eles oferecem.

Talvez Fragoso ainda não tenha acordado direito para a manipulação do seu trabalho, já que circunscreve sua luta aos arraiais acadêmicos, esquecendo-se o quanto pode ser prejudicial uma obra bem intencionada que não preveja o estrago que fará em outros redutos, especialmente a política partidária, hoje confinada à mesmice tucano-petista. Apesar disso, é importante que Fragoso lance luzes sobre o engessamento dos pseudo-marxistas em relação aos fatos históricos.

Por exemplo: a Inglaterra libertou os escravos porque a revolução industrial precisava de consumidores. Teoria aceita como verdade e não podemos discordar dela. Mas houve alguém que lutou pela abolição, que impôs sua vontade ao longo de décadas, que queimou miolos, saúde e juventude no projeto. Não foi apenas infra e superestrutura, foi gente de carne e osso. Chama-se William Wilberforce, personagem deste grande filme que é Amazing Grace, ou Jornada pela Liberdade.

A cultura cinematográfica inglesa dá mostras sucessivas de maturidade, ao tratar grandes personalidades, reis e rainhas, com todas suas nuances humanas, de maneira criteriosa e muitas vezes cruel. Eles giram em torno do paradigma shakespeareano e conseguem debater a História por meio de performances magníficas, em todos os setores do cinema, da direção à interpretação, dos figurinos à montagem. "Jornada..." é um assombro de filme sobre bastidores da política e de reiteração do papel civilizador que os ingleses se atribuem.

Sou muito estranho, me emociono com filmes políticos bem feitos. Ainda mais um sobre Wilberforce, do qual nada sabia. O bom é que não há aquele ranço da correção absoluta. O jovem primeiro ministro Will Pitt, o melhor amigo do abolicionista, diz que principalmente as amizades dançam diante dos interesses econômicos e políticos. Ou seja, os artistas metem a mão sem cerimônia em suas estátuas, que saem dessa experiência ainda mais valorizadas. O segredo é a auto-estima nacional intacta e, repito, maturidade cultural

Os americanos já fizeram o mesmo com David Crockett e outros mitos, reinstalando-os na vida contemporânea sem cair em grosseiros anacronismos. Mas costumam errar a mão quando estão em jogo as picuinhas políticas em véspera de eleição. Estou me referindo a mais um filme democrata, Bobby (ou Robertinho), sobre os bastidores do assassinato de Robert Kennedy em 1968. Mesmo com a presença de atores soberbos, como Anthony Hopkins e Harry Belfonte, o filme dirigido por Emilio Esteves é a visão de um menino diante do seu ídolo.

Todos sabem que Robert Kennedy foi o responsável pelo fato de seu irmão Jonh ter caído em desgraça diante da máfia, que o ajudou a se eleger e depois foi traída. Bob ocupava o cargo de Procurador Geral. Todos sabem que foram os democratas que se meteram no atoleiro do Vietnã. Mas nada disso importa. O discurso de campanha é tratado como verdade histórica pelo cineasta Esteves (filho de Martin Sheen, que também está no filme).

O que vale são as presenças dos atores. Além dos dois citados, temos Bill Macy (com sua cara de rádio dos anos 30), Sharon Stone (ótima no papel de uma cabeleireira), Demi Moore (que interpreta uma cantora alcoólatra), entre outros. Uma surpresa foi ver a tradução que fiz para o título da saga do rei Arthur quando assumi o cargo de editor executivo da W11: “O único e eterno rei” foi a solução que encontrei para Once and future king. O tradutor do filme respeitou minha frase ( aprovada pela tradutora da saga impressa em livro, Maria José Silveira e pelo meu editor na época, Wagner Carelli). Mas no making of, pisaram na bola. Colocaram "O primeiro e futuro rei", mas vale a que está no filme.

É uma delícia ver seu próprio trabalho alcançar o status de idéia consolidada. Fiquei contente.

RETORNO - Imagens de hoje: na primeira foto, Ioan Gruffudd no papel de Wilberforce em "Amazing Grace" (filme que teve ainda a performance magistral de Albert Finney, um dos maiores atores do mundo) ; na segunda, Emilio Esteves e Demi Moore em Bobby.

17 de abril de 2008

O REAL INVENTADO


Aos poucos, a saga de Diogo e Diana vai conquistando leitores e ganha mais atenção. A seguir, reproduzo entrevista concedida ao escritor Sergio Napp por Tabajara Ruas e Nei Duclós, autores de Diogo & Diana (Volume 1) – Meu vizinho tem um rotteweiler (e jura que ele é manso), livro debatido no 11º Encontro da REINAÇÕES, projeto importantíssimo de Porto Alegre que enfoca a literatura infanto-juvenil em eventos sucessivos.

TABAJARA: OI, Napp, em primeiro lugar, desculpe a demora. Devo deixar bem claro que é uma grande alegria saber que caras como tu e o Levitan, poetas, escritores e músicos de fina sensibilidade, curtiram nosso texto infanto-juvenil. Acompanho a carreira de vocês desde meus tempos de estudante, desde que era um simples voluntário da arte de escrever (ainda sou) e o tempo só confirma minha admiração. Dito isso, que é a mais pura verdade, vou responder:

NAPP: O que te levou a enfrentar a literatura para jovens? (falta de textos no mercado para esta faixa, falta de bons textos, mais um desafio, etc.)

TABAJARA: Mais um desafio. Já escrevi romances policiais, góticos, históricos e de costumes. Escrevi seis romances, vem aí o sétimo, estes anos: "O detetive sentimental". Mas um texto infanto-juvenil era sim, na época (dois anos atrás) um desafio. A possibilidade de escrever uma história mais livre, mais despojada, com menos significados e mais ação.

NEI: Criei inúmeras histórias quando meus filhos eram pequenos e acabei escrevendo, antes da experiência de Diogo e Diana, dois pequenos livros, ambos para o público infantil. Um é “Rosinha Guarda-Chuva”, em prosa, e o segundo “Viagem ao outro sol”, em poesia. Fui criado, como todo mundo, pelo Monteiro Lobato. Encarar o projeto Diogo e Diana foi o resultado natural dessa vivência. Tabajara Ruas, ao me convidar para desenvolver o projeto, me deu a oportunidade de mergulhar numa saga que poderia somar essas leituras e histórias e abrir novas janelas da criação literária. Um escritor, se está na roda, está sempre pronto. E foi assim que nos metemos nessa encrenca, a melhor que poderia acontecer.

NAPP - como é trabalhar em dupla? Como se dá isto na prática? Quem trazia as idéias, quem elaborava o texto? Havia reuniões? O texto era escrito em conjunto, quero dizer, vocês se reuniam e escreviam ou cada um era responsável por uma parte do texto?

TABAJARA: Trabalhar em dupla é muito bom, se encontramos o parceiro certo. Tenho essa experiência de escrever roteiros para cinema, em geral em parceria.As idéias e os textos de Diogo e Diana foram naturalmente criados e escritos por nós dois. Se um escritor já é capaz de inventar sozinho um monte de bobagens, imagina dois. Fazíamos reuniões, sim, dividíamos as tarefas, trocávamos os textos, trocávamos opiniões a respeito dos textos. Nei e eu somos companheiros de infância em Uruguaiana e escrever esse livro foi só retomar antigas conversas na beira do rio Uruguai.

NEI: Tudo ao mesmo tempo. Há reuniões (estamos nos segundo livro), onde combinamos o argumento (a história em linhas gerais, de cada parte) e dividimos o trabalho,. Escrevemos intercalando os capítulos. No primeiro livro, o início foi do Taba e eu continuei, ele retomou e assim até o final. Neste segundo, eu dei a partida, mas sempre combinando antes. As idéias surgem naturalmente nas nossas reuniões. Temos uma sintonia antiga e estamos acostumados a conversar e criar situações, trabalhar personagens etc. Fazemos isso espontaneamente. Quando tem livros pela frente, fica ainda melhor.

NAPP: Por que uma trilogia?

TABAJARA: Não sei bem porque, mas é legal o compromisso. Talvez seja por isso, pelo compromisso. Saber que vamos ter que espichar a história, desenvolver mais os personagens, extender o desafio até um limite bem mais longe do que uma histórica com começo, meio e fim.

NEI: O Taba veio com o projeto de uma trilogia e eu achei o máximo. É comum tanto na literatura quanto no cinema. Uma trilogia serve para viajar profundamente na história, desenvolvê-la ao máximo, conviver com as criaturas por um tempo maior. É também um resgate dos velhos seriados: sempre tem algo pela frente, uma nova situação, novos perigos. O suspense serve para manter a atenção dos leitores. Tem funcionado. É costume perguntar quando sairá os outros livros.

NAPP: Alguma influência dos best-sellers atuais (Potter, Nárnia, etc.)? Não quanto à história e seu desenvolvimento, mas em relação à extensão e a trilogia.

TABAJARA: Tudo influencia a gente, Napp. Uma folha caindo, leve e silenciosa, despercebida por todos, está lá, num cantinho do livro. Mas a vontade de escrever uma trilogia vem desde a leitura de O Tempo e o Vento, acho eu...

NEI: O Harry Potter convenceu os editores que os adolescentes e as crianças não querem livrecos com meia dúzia de caracteres. Gostam de livrões, que param em pé. Isso já existia na nossa infância. Li todo o Monteiro Lobato infantil naquela famosa edição de capa dura, com livros grossos. Não sei quem inventou essa bobagem que precisa facilitar as coisas para quem tem pouca idade. Os livros clássicos de aventuras são senhores livros. Harry Potter bebeu nessa evidência. Nós nos dispusemos a escrever livros que gratifiquem os leitores, que fossem generosos na complexidade da trama e da natureza e comportamento dos personagens. Mas não existe nenhuma influência de Potter ou qualquer outra saga. Diogo e Diana é invenção brasileira, é coisa nossa.

NAPP: Tenho para mim que os textos atuais são pouco fantasiosos e voltados para o umbigo do autor/personagens (Ana ama Pedro que ama Raquel, mas Raquel é gorda e desengonçada, mas há a formatura e o casal se encontra e Pedro considera que Raquel não é tão gorda e desengonçada, e por aí vamos): vocês sentiram ou pesquisaram o que havia no mercado para optar por uma história real e, ao mesmo tempo, extremamente fantasiosa (fantasia aqui como um predicado).

TABAJARA: Sentimos mais do que pesquisamos. Aliás, não pesquisamos nada. A intuição é nossa pesquisa.

NEI: Não fazemos pesquisa de mercado. Somos escritores, e isso tem a ver um pouco com atenção extrema ao que se passa ao nosso redor e com mediunidade. Estamos impregnados de convivência com a meninada. Nos trabalhos jornalísticos mais recentes, convivi muito com as novas gerações. Nas ruas, nos ônibus, na mídia, por toda parte, a presença da gurizada é impositiva, não há como escapar. Então esse é o insumo que alimenta Diogo e Diana. Não tem perigo de errar. E a solução é clássica: o real é a base da fantasia; no real, há muito do sobrenatural. Duendes, fadas, bruxas, superpoderes nasceram naturalmente no mundo dos vivos, fazem parte da realidade. Tudo é linguagem, tudo é invenção. Acho que o real é o imaginado. Uma leitora aqui de Florianópolis, adulta, perguntou se os personagens existem. Claro que sim, respondi, são inventados.

NAPP: Diogo e Diana aparentam ser dois jovens normais, aos olhos de quem os cerca, mas detém poderes que os tornam diferentes; não há no texto o clássico triângulo amoroso juvenil (já referido acima) e esta não é a preocupação primordial da história: vocês pensaram-na desta forma para evitar o clichê ou não houve a preocupação que eu levanto?

TABAJARA: Há e não há triângulo. Ás vezes é um quadrado. A história ou as histórias de amor da nossa história foi sendo bolada sem muita preocupação de saber quem fica com quem, ainda não sabemos, pode haver muitas surpresas no caminho e juramos por Santa Catarina que haverá. Adolescentes com poderes misteriosos é um clichê muito antigo, o Harry Potter deu um baita impulso no gênero, sem dúvida, mas a vontade de escrever algo assim é bem antiga, anterior ao pequeno mago inglês, que eu acho genial embora só tenha lido o primeiro livro. (Mas vi todos os filmes.).

NEI: Diogo sofre de amor diante de Diana, a bela. Esta faz ciúme usando o Jacaré. Suellen está de olho no Espertinho. Acho que sobra triângulo amoroso. Mas não é a preocupação primordial da história. O tema é a luta contra o Mal, o Mal que ninguém vê, que parece normal e que só nossos heróis conseguem vislumbrar e isso os enche de horror.

15 de abril de 2008

OS CONSULTORES


Nei Duclós (*)

Virou lei. Todos têm algo a dizer. Nem é preciso fazer nada, basta aparecer em frente a alguém para lá vir o dedo em riste, advertindo sobre algo necessário e fundamental. Tendo a moral abandonado a vida pública, os valores foram privatizados. Pertencem a qualquer um que se arvore a pastorear o bruto rebanho de infiéis que existem ao redor. Nesse gado, se sobressai o indivíduo sem fórum, o que guarda ressentimento e acaba se transformando em mais um moralista de ocasião.

O que impressiona é a sobrevivência de antigos vícios, que jamais sucumbem diante da pretensa evolução do mundo. A certeza de que as crianças estão sempre erradas e merecem ser corrigidas pelo zelo opressivo dos adultos é uma delas. A infância é um conjunto de erros. Espontaneidade é malcriação, insistência merece uns cascudos, gritos uns tapas, palavrão castigo. Amparados pelo tamanho, as pessoas gostam de sentar em cima dos petizes os tabefes de palavras desagradáveis.

Outra sobrevivência é a moral religiosa, esse verniz esperto que cobre a rugosidade do egoísmo. “Venha cá que vou ler uma mensagem para você”, dizem os sátrapas da correção impoluta. E lá vem os conselhos de melhor viver, como abandonar essa vida pagã onde você está metido, e como devemos nos comportar diante do olho clínico dos devotos, sempre de cabeça levantada e exibindo a testa como um farol a iluminar a paisagem.

Mas existe ainda a consultoria sobre o comportamento pessoal e profissional, as lições fundadas nos provérbios importados e adaptados à sabedoria milenar das superfícies milimétricas. Da anedota pulamos para as “dizidas”, que não admitem contestação. Sobram pílulas douradas do aconselhamento, enquanto todo mundo se locupleta. O pecado que é viver no ambiente imperial da especulação, corrupção, violência e exploração pura e simples jamais é expiado.

A indignação é moeda corrente que compra qualquer tipo de solução para os males do mundo. O bom-mocismo, essa falta de caráter vestida para a missa, hoje movimenta milhões em reclames e eventos. No fundo, todos querem a salvação da humanidade, mas tudo fazem para que o planeta se exploda, desde que o saldo bancário esteja garantido.

É um mistério que existam platéias gigantescas para tanta enganação. A fome de ética acaba gerando um fast-food de falsas vantagens espirituais. Os profetas da nova ordem não só enriquecem como chegam à idade provecta sem que ninguém os combata. Parece que encarnam um novo poder, ditado talvez pela mão pesada da tirania que governa de fato as nações em frangalhos. Os países caiados para aparecer em horário nobre são manipulados por interesses que foram muito além do velho imperialismo.

O domínio hoje se faz dentro da cidadania de espírito desarmado. É lá que os artífices do mando brincam de compor miniaturas de navios em garrafas foscas. As vítimas carregam uma frota de falsos ensinamentos, mas não há nenhum mar para singrar. O que existe é o abismo para onde rolam os sonhos, os paredões que impedem o livre pensamento, a ignorância em corações transformados em pedra. O mundo perdeu a guerra, depois de perder todas as batalhas. Vivemos nas catacumbas iluminadas pelo brilho falso da virgindade moral.

Mas esse sistema faz água o tempo todo. Esqueceram de desinventar a alma, território incorruptível de um criador que jamais nos abandona. Alma, por ser eterna, dispensa a auto-ajuda.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 15 de abril de 2008, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: o dedo em riste na cara da cidadania - a falsa moral convoca para o morticínio.

14 de abril de 2008

O TEMPO ENTRA EM CAMPO


O futebol é a voragem do tempo. É impossível acompanhar. Quando acho que conheço algum jogador, ele já se aposentou, já foi técnico, agora é cartola, voltou da Europa, que sei eu. Mas não é apenas isso. Quando vi ontem o goleiro Marcos no Palmeiras fiquei perplexo. O Marcos, ainda? Não tinha ido embora, saído? E o Alex, já é avô na Turquia? E o Adriano, não estava na balada em Milão ou Madri? Está fazendo gol com a mão no Morumbi? É muita areia para meu pobre caminhãozinho.

Como corintiano licenciado, privilégio ao qual me dei o direito depois que o Kia assumiu e o Tevez virou ídolo do timão, e não porque “Vampeta, amanhã é segunda” como dizia um torcedor na véspera da desgraça, posso falar o que bem entender sobre os campeonatos. Uma coisa que realmente me espanta é a insistência em colocar o Paulo César de Oliveira como juiz em partidas decisivas. Por que isso, meu Deus? Sempre dá rolo, o cara é uma fonte de problemas, mas ele continua lá, a prova viva da persistência no erro.

Mas o mais impressionante é o que a bola faz com os coitados dos jogadores. O nível do futebol que vejo por acaso na televisão está abaixo da várzea dos times de Uruguaiana nos anos 50. Ontem, no domingo, teve um lance muito comentado em que três jogadores se atoraram sucessivamente. Sim, se atoraram. Quando você quer chutar a bola e chuta o ar, você se atora. Foi assim que aprendi em Uruguaiana e como todos sabem, a fronteira está sempre certa. Bá, me atorei! E tome cascudo.

Pois o defensor se atorou, o atacante se atorou, o goleiro se atorou e aí a bola entrou (que remédio?) dentro do gol, pois estava na reta mesmo. Teve mais um lance parecido em que um zagueiro chutou as nuvens e a bola caiu nos pés do adversário, que fez a festa nas redes. Como hoje levam craques ainda no berço para o Exterior, ficamos com a sobra e com os veteranos que voltam por terem caído em alguma desgraça, como a idade, ou a balada.

O futebol da várzea era o celeiro de craques do Brasil soberano. Hoje é alvo de deboche do Fantástico com seu quadro “Bola cheia e Bola murcha”. Faz sentido. Se o futebol que se joga no país está no nível varzeano, a várzea não passa de um circo de palhaços. Tudo celebrado pelos canastrões apresentadores, os que arregalam os olhos e fazem trejeitos e poses diante das câmaras. Depois diziam que Charlton Heston era canastrão. Heston era um ator soberbo. Quando estava velho, com Parkinson ou Alzheimer, recolhido em sua casa, foi tripudiado pelo Michael Moore, que sumiu depois da segunda vitória de Bush. Foi um crime do gordote, que tanta denúncia boa fez na TV e em livros. Mas Heston é eterno e só sua interpretação de Ben Hur (denso, lento, explosivo) o coloca no Olimpo da Sétima arte.

RETORNO – 1. Imagem de hoje: Charlton Heston nas galés, em Ben Hur. O magnífico ator, aqui no meio da "galera", jamais se atorava na interpretação.

EXTRA: NOVA EDIÇÃO DA REVISTA SAGARANA

Glauber Rocha em Sagarana! Julio Monteiro Martins anuncia:

“Caros amigos, é com satisfação que anunciamos a presença on-line, a partir de hoje, do n° 31 da revista Sagarana (em língua italiana). Neste mesmo endereço é possível ler os textos atualizados da nova seção da revista: Il Direttore, com a tradução em italiano do conto "O Barco Vermelho", de Julio Cesar Monteiro Martins (publicado inicialmente no libro "Muamba", Editora Anima, Rio de Janeiro, 1985).

Esta nova edição de Sagarana, dedicada à figura de Glauber Rocha, oferece aos seus leitores uma entrevista inédita con o crítico Harold Bloom, textos de Clarice Lispector, Enzo Baldoni, Piergiorgio Bellocchio, Glauber Rocha, Susan Sontag, Roberto Arlt, Guimarães Rosa, Milan Kundera, e poesias de Drummond, Neruda, Frost, Brenda Porster e Eunice Odio, além da sétima e última edição da Exposição fotográfica virtual dos maiores fotógrafos dos últimos cem anos (todos os números precedentes de Sagarana estão ainda on-line no mesmo endereço telemático e podem ser consultados).

Ademais, na seção Archivi, estão disponíveis para leitura todas as "Lavagne del Sabato" publicadas até hoje em Sagarana.”

O TEMPO ENTRA EM CAMPO

O futebol é a voragem do tempo. É impossível acompanhar. Quando acho que conheço algum jogador, ele já se aposentou, já foi técnico, agora é cartola, voltou da Europa, que sei eu. Mas não é apenas isso. Quando vi ontem o goleiro Marcos no Palmeiras fiquei perplexo. O Marcos, ainda? Não tinha ido embora, saído? E o Alex, já é avô na Turquia? E o Adriano, não estava na balada em Milão ou Madri? Está fazendo gol com a mão no Morumbi? É muita areia para meu pobre caminhãozinho.

Como corintiano licenciado, privilégio ao qual me dei o direito depois que o Kia assumiu e o Tevez virou ídolo do timão, e não porque “Vampeta, amanhã é segunda” como dizia um torcedor na véspera da desgraça, posso falar qualquer coisa sobre os campeonatos. Uma coisa que realmente me espanta é a insistência em colocar o Paulo César como juiz em partidas decisivas. Por isso meu Deus? Sempre dá rolo, o cara é uma fonte de problemas, mas ele continua lá, a prova viva da persistência no erro.

Mas o mais impressionante é o que a bola faz com os coitados dos jogadores. O nível do futebol que vejo por acaso na televisão está abaixo da várzea dos times de Uruguaiana nos anos 50. Ontem, no domingo, teve um lance muito comentado em que três jogadores se atoraram sucessivamente. Sim, se atoraram. Quando você quer chutar a bola e chuta o ar, você se atora. Foi assim que aprendi em Uruguaiana e como todos sabem, a fronteira está sempre certa. Bá, me atorei! E tome cascudo.

Pois o defensor se atorou, o atacante se atorou, o goleiro se atorou e aí a bola entrou (que remédio?) dentro do gol, pois estava na reta mesmo. Teve mais um lance parecido em que um zagueiro chutou as nuvens e a bola caiu nos pés do adversário, que fez a festa nas redes. Como hoje levam craques ainda no berço para o Exterior, ficamos com a sobra e com os veteranos que voltam por terem caído em alguma desgraça, como a idade, ou a balada.

O futebol da várzea era o celeiro de craques do Brasil soberano. Hoje é alvo de deboche do Fantástico com seu quadro “Bola cheia e Bola murcha”. Faz sentido. Se o futebol que se joga no país está no nível varzeano, a várzea não passa de um circo de palhaços. Tudo celebrado pelos canastrões apresentadores, os que arregalam os olhos e fazem trejeitos e poses diante das câmaras. Depois diziam que Charlton Heston era canastrão. Heston era um ator soberbo. Quando estava velho, com Parkinson ou Alzheimer, recolhido em sua casa, foi tripudiado pelo Michael Moore, que sumiu depois da segunda vitória de Bush. Foi um crime do gordote, que tanta denúncia boa fez na TV. Mas Heston é eterno e só sua interpretação de Ben Hur (denso, lento, explosivo) o coloca no Olimpo da Sétima arte.

RETORNO – Gauber Rocha em Sagarana! Julio Monteiro Martins anuncia: “Caros amigos, é com satisfação que anunciamos a presença on-line, a partir de hoje, do n° 31 da revista Sagarana (em língua italiana), no endereço telemático www.sagarana.net . Neste mesmo endereço é possível ler os textos atualizados da nova seção da revista: Il Direttore, com a tradução em italiano do conto "O Barco Vermelho", de Julio Cesar Monteiro Martins (publicado inicialmente no libro "Muamba", Editora Anima, Rio de Janeiro, 1985).

Esta nova edição de Sagarana, dedicada à figura de Glauber Rocha, oferece aos seus leitores uma entrevista inédita con o crítico Harold Bloom, textos de Clarice Lispector, Enzo Baldoni, Piergiorgio Bellocchio, Glauber Rocha, Susan Sontag, Roberto Arlt, Guimarães Rosa, Milan Kundera, e poesias de Drummond, Neruda, Frost, Brenda Porster e Eunice Odio, além da sétima e última edição da Exposição fotográfica virtual dos maiores fotógrafos dos últimos cem anos (todos os números precedentes de Sagarana estão ainda on-line no mesmo endereço telemático e podem ser consultados).

Ademais, na seção Archivi, estão disponíveis para leitura todas as "Lavagne del Sabato" publicadas até hoje em Sagarana.

13 de abril de 2008

LUTAR CONTRA A DITADURA


Quando falo em ditadura, há moita geral ao redor. No Comunique-se, onde a toda hora toco no assunto, ninguém replica, ninguém diz: “não, não estamos numa ditadura”. Passam por cima, passam lotados. Ditadura, assim como os trens e o trabalhismo, pertencem ao “passado”. Falar em ditadura seria sentir saudades dos tempos idos. Nunca pensei que eu pertenceria ao grupo mais discriminado de todos, os que acumulam idade. Muitos tapinhas nas costas e um “pronto, pronto, já passou” é o que menos precisamos agora. Ainda mais que sobram evidências de que vivemos numa ditadura.

O escândalo é que a palavra democracia, de tanto ser repetida pelos ditadores, acabou colando. É “bem” ser democrata. Quando vejo o cinismo vestindo a roupa da pseudo liberdade, descubro que democracia é uma espécie de grife chic que exibe as qualidades portentosas dos bem postos. Pessoas de bem, ou seja, gente de posses, são agora democratas. Adoraram 1964, continuam adorando. O que chamam de democracia serve apenas para colocar a culpa na cidadania pelos horrores gerados na ditadura. “Ah, mas você votou neles, agora agüenta”. Impõem os candidatos nicados e te oferecem a escolha. O voto acaba obedecendo a máxima do “não tem tu, vai tu mesmo”.

O passado parece ser “coisa de pobre”: é feio falar nisso. A elegância da moita, o silêncio em relação à verdade, é a tática tanto dos espertalhões, quanto dos sobreviventes. Como vivemos em cima de um monte de cadáveres, que cresce todos os dias, então calamos e olhamos de maneira significativa para o nada. Mas é perda de tempo. Ditadura existe e tem seu núcleo nos Estados Unidos. Vejam por exemplo o filme “O Suspeito" (Rendition), de 2007, do roteirista Kelley Sane e do diretor Gavin Hood. É sobre a tortura dos prisioneiros levados para países de merda, a cargo da CIA. As cenas reproduzem os pesadelos que pertenciam ao Terceiro Mundo.

Nos Extras do dvd, há um documentário que mostra alguns casos de inocentes torturados, depoimentos que são intercalados pelas mentiras oficiais, de cara limpa, de W. Bush e Condoleeza Rice (recebida com tapete vermelho pelos brasileiros, que ficam de cu para cima quando ela passa por aqui a caminho da Argentina). Destroem vidas, eliminam carreiras, quebram famílias em nome da segurança deles. Já vimos esse filme e continuamos vendo.

No artigo “Chile Libertad con las manos atadas”, publicado na edição deste domingo no La Insignia, Roberto Ortiz diz textualmente: “ Christopher Cyril Harrison y Joffrey Paul Rossj, periodistas franceses, fueron detenidos en Collipulli, IX Región, mientras realizaban un documental sobre la situación del pueblo mapuche.(...) Varios periodistas y fotógrafos han denunciado ser objeto de golpizas y amenazas por parte de la policía, entre ellos el gráfico Jorge Zúñiga y los jóvenes videístas de Indymedia y otros medios de comunicación independientes. (..)La libertad de expresión en Chile sigue de manos atadas. Recientemente, la Corte de Apelaciones de Santiago desestimó una querella presentada por el ex militar y represor de la dictadura de Augusto Pinochet, Edwin Dimter, contra quienes lo evidenciaron como el responsable del asesinato del cantautor comunista Víctor Jara, ocurrido el 14 de septiembre de 1973.”

Ou seja, torturam, matam, censuram e fica tudo por isso mesmo. Os americanos agora provam do próprio remédio. Criaram as ditaduras no Terceiro Mundo, mantêm esse sistema com arrocho financeiro, especulação, invasão, dominam a mídia comprada e são apoiados pelos traidores de sempre, os que adoram viajar às custas do povo brasileiro, distribuindo abobrinhas pelo mundo todo. Podem dizer o que quiserem, mas as palavras de ordem continuam, infelizmente, intactas: Abaixo a ditadura e fora o imperialismo.

RETORNO - 1. Imagem de hoje: Reese Whiterspoon, no papel da esposa grávida do torturado, aguarda o momento de ser recebida para obter informações sobre o marido. Cena do filme "O Suspeito". 2. A Folha deste domingo está um espanto. Há vários exemplos do bem pensar na ditadura. Primeiro achar que o maestro Karajan engessou a música erudita para as próximas gerações. Segundo, achar que ninguém sabe o que disse Ptmolomeu ("vocês, que não assistiram minha aula", escreve o articulista científico). Terceiro, defender a brutal repressão chinesa no Tibete, já que a China teria "modernizado" a região. Isso tudo está disseminado em editoriais, artigos, resenhas etc. A aparente diversidade dss fontes trai a mesmice dos objetivos, que é desmoralizar o gênio, confiar no sistema global, entronizar a mediocridade como produtora de pensamento, desprezar a opinião pública, cagar em cima do sucateamento da educação e pontificar sobre o óbvio com a pose da erudição cheia de posses. Tudo isso embalado por um veículo que usa de modo errado a tradição da livre opinião, já que repete, em todas as páginas, as evidências do triunfo do mundo transformado em mercadoria.

12 de abril de 2008

IMPULSO


Nei Duclós

Nuvens são continentes
na bola que oprime
o poente

O mar acima do rio
e as terras
de pura névoa

São a paisagem perdida
de uma viagem
sem trégua

Onde a imagem navega
o poema sobre
a gávea

Barcos sonham singrar
a roda que roça
a várzea

Qual seria a descoberta
no dorso do céu
em festa?

Existiria algum porto
no outro lado
da esfera?

Ou voltariam do abismo
sem os tesouros
da aposta?

A dúvida não importa
na calma anterior
ao salto

O que vale é a armadilha
que enreda os dedos
do vento

E o impulso do remo
que expulsa o surto
da espera

RETORNO - A foto acima, de Anderson Petroceli, inspirou o poema.

11 de abril de 2008

DITADURA GLOBAL PROVOCA FOME


Fica cada vez mais claro. A especulação financeira, que financia regime ditadoriais em todo mundo (a maioria sob a casca da chamada democracia), e que no Brasil está no trono há décadas, aprofunda a fome do mundo. Estamos fritos desde que o trigo e o arroz viraram commodities, ou seja, servem aos ganhos especulativos, os mesmos que usaram crédito imobiliário pôdre para disseminar as ameaças de recessão mundial.

Era apenas uma questão de tempo. Se comida é comodity, então obedece à perversidade do lucro fácil, pois quanto mais escassa, mais valorizada. Mas a escassez não significa horror alimentar, não contraria o princípío básico de que plantamos para comer? Isso não tem importância. O que vale é tratar alimento como se fosse petróleo. A fome desmoraliza a argumentação de que o mercado livre (ou seja, a lei da selva no comércio mundial) gera abundância. Sabemos que isso é besteira. Abundância significa preço baixo, que é o grande fantasma que assusta os especuladores.

Escassez dá lucro, tão simples assim. Falta comida? Isso é bom pra o mercado. Digam isso no Haiti, onde nossas tropas enfrentam grossa manifestação do povo insurgente. Servimos de testas-de-ferro para a política imperialista de Bush, agora arcamos com as conseqüências. O que querem os haitianos? Comida, auto-determinação, soberania. Tudo isso está em falta. No fundo, o objetivo é evitar que surja uma nova Cuba, aquela ditadura horrorosa que não deixa nenhuma criança passar fome.

O Brasil se situa no miolo da crise, pois intensificou o uso de suas terras aráveis para a produção de biocombustível. E também porque exibe a cara internacional da cretinice que é o presidente Lula, dizendo que falta comida porque os pobres “agora” estão comendo. Disse isso na Holanda, com a desfaçatez de quem assiste de camarote as movimentações para perpetuá-lo no poder (pois é isso que está em pauta, mantê-lo lá para que a falta de soberania do país complete seu ciclo perverso). Sabemos o que significa: ele, Lula, é responsável pelo aumento do consumo alimentar dos pobres, e isso se estende ao globo todo, naturalmente, já que sua megalomania não tem limites.

O noticiário é um circo de horrores, em todas as editorias, não só na economia (ou Dinheiro, como querem agora, como se a grana fosse a única coisa que interessa na economia). Não comento mais aqui, pois fica repetitivo. As coisas apenas se confirmam. Como então um imbecil desse programete de merda, o Casseta e Planeta, se acha no direito de achar Glauber Rocha uma merda? Merda é o Casseta, que repete sempre a mesma piada. Aí acorrem os arautos da falsa democracia, tentando defender o direito à opinião livre.

Opinião livre um bom caralho. O Casseta faz parte da baixaria da televisão, do fim do humor. É um anedotário escroto, bem ao gosto do sistema que nos governa e que impõe monopólios na televisão. Achar Glauber uma merda é como jogar tinta em Leonardo da Vinci. Você respeita o gênio: se não tiver condições de analisar, entender, então cale a boca. Você não pode se servir da notoriedade que a mídia comprada lhe dá para colocar uma pedra de cal num cineasta brasileiro que deslumbrou o mundo.

Você vê os filmes do Glauber? Nem eu. Jamais vi Cabezas Cortadas e Di só graças ao you tube. Há quanto tempo não passa Barravento, Deus e o Diabo, Terra em Transe na televisão aberta? Esses filmes estão disponíveis em dvd? Agora, Casseta sobra, por que será? Para onde você virar a cabeça, lá estão os cassetinhas de merda, pulhas, merdinhas de araque com suas piadinhas, seu filmeco, seu programete. Esse é o tipo de cabeça que é incensada na mídia. Servem aos poderes.

Puxa, ele tem o direito , viu? Tem nada. É crime. É como pregar o separatismo. É como matar. Como dizia o bandido, pressionado pelas denúncias e perseguições: "Nem me deixam matar em paz!" Pois não deixamos matar Glauber em paz. Glauber, que lutou contra a fome, que denunciou os desmandos, que se insurgiu contra o imperialismo. Glauber, que criou as imagens mais poderosas da cultura brasileira. Glauber, que continua berrando. Glauber Rocha contra dragão da maldade.

RETORNO - 1. Delmar Marques morre e os equivocados caem em cima. Chamam o repórter e escritor de antiquado, briguento. Delmar era jornalista, exercia uma profissão quase em desuso no Brasil. Matava de inveja os medíocres das redações e do patronato. Isso não significa que fosse antiquado. O que é antiquado é a censura, a ditadura. Delmar estava na vanguarda. Briguento? Fazia oposição, coisa que não se fz mais. São todos a favor. 2. Imagem de hoje: Glauber berra, os idiotas tremem.

9 de abril de 2008

DELMAR MARQUES: O SOPRO DO MINUANO


Nei Duclós

Certa vez, Delmar Marques me contou como escapou de um atentado. Ele estava de moto e parou num sinal. Viu que ao seu lado tinha um volkswagen com dois sujeitos dentro. O motorista afastou a cabeça para que seu comparsa apontasse o revólver. Delmar deu praticamente um cavalo de pau ao acelerar bruscamente e virar 180 graus, fazendo a curva em direção contrária em que embicava a moto. Refugiou-se num condomínio de apartamento, onde um militar aposentado, de pijama, salvou sua vida. Quem o perseguia eram assassinos contratados. Estava sendo ameaçado depois de uma série de denúncias que tinha feito sobre grossa falcatrua em Porto Alegre.

Vivia perigosamente porque era um jornalista de verdade. Mas não se confinou aos limites impostos nas redações. Quando tinha coluna, fazia grandes reportagens. Quando cobria eventos corporativos, ia atrás de informações que expunha as vísceras do mundo empresarial. Escrevia fluvialmente: peças de teatro, poesia, romances, ensaios. Conversou com todas as grandes personalidades do Brasil que ele viu morrer ao seu redor.

Um belo dia, recém convidado por mim para trabalhar numa revista, chegou no almoço dedicado à imprensa vestindo vistoso terno branco, contrastando com as cores pretas de todos os convivas. Sentou-se na mesa principal, completamente à vontade, ao lado de tubarões, monarcas, capitães do mato. Dava a eles o privilégio de serem tratados como seus pares.

“Aqui é o Delmar Marques!” dizia, pleno de si, ao telefone, quando brigava por informação. Eu implicava, dizendo que era excessivamente auto-centrado. Tamanha obviedade arrancava dele gargalhadas. Claro que era, o mundo girava ao seu redor. Fazia o que bem entendia, porque encarava a sério a palavra liberdade. Nos últimos anos, dedicou-se a desvendar o mistério do desaparecimento dos índios minuanos. Ou melhor, de como os minuanos ajudaram a formar o povo riograndense e como hoje todos esqueceram essas origens. Sonhava emn resgatar as sociedades matriarcais míticas, ancestrais, numa linhagem oswaldiana legítima e fora do circuito dos incentivos culturais.

Lutava pela dignidade da profissão de jornalista, criando uma barreira entre o marketing das relações públicas e as redações. Foi voto vencido, já que a profissão acabou. Foi-se o amigo e um homem de coragem. É cedo para avaliar sua trajetória. Ainda estamos próximos demais para entender sua luta. Tudo nos escapa em Delmar, coração exposto na tormenta. Nenhuma palavra o define, nenhuma lembrança o resgata. Jogou-se ao mar sem o socorro de amarras.

Não devolveram seu coração em farrapos, que gastou de tanto uso. Veio de longe, do miolo do pampa, terra de guerreiros. Quiseram matá-lo cedo, mas ele não permitiu essa chance aos inimigos. Escolheu o momento, sabendo que não tinha mais tempo. O que poderemos dizer de alguém que caminha consciente para o desenlace, porque não quis perder um só minuto de vida? Melhor deixar que fale por si, que caia sua avalanche sobre todos, enquanto calamos em sinal de respeito. Reportagem, poesia, romance, história: por todas as artes sopra seu vento, minuano de nascença, eterno por destino. Delmar Marques se retira, e não sabemos ainda o que perdemos.

RETORNO - Imagem de hoje: Delmar Marques, nascido em Rio Grande há 60 anos, no Rio Grande do Sul, morreu no Hospital das Clínicas, à espera de um coração para o transplante. Fui seu amigo por mais de uma vida, desde que éramos muito garotos. Sempre fomos muito próximos e muito afastados um do outro. Opostos e iguais como dois irmãos.

8 de abril de 2008

PALÁCIO INTERIOR

Nei Duclós (*)

Ninguém nasce pronto, mas isso não convence os entrevistadores. Eles precisam de pessoas à altura da brutalidade competitiva. É uma ilusão: é impossível ter alguém que caiba no cargo sem fazer ruído, a não ser que o pretendente seja um gênio do marketing e manipule seu currículo de tal forma que o truque passe despercebido. Quando a corporação se dá conta, o sol já está alto.

No fundo, todos se adaptam às situações e levam a vida inteira para superar aquela força de inércia que nos prende ao humano e não permite que viremos autômatos de uma vez por todas. É o coração quem manda, e a razão, para complicar, não costuma obedecer. Somos seres culturais misteriosos, capazes de fazer qualquer coisa para mimetizar a precisão do relógio suíço, enquanto dormimos profundamente nas palestras de incentivo.

Até existe compreensão, no mundo profissional, que tolera essas limitações. Para aumentar a produtividade, reinventaram a sesta. Chefes esclarecidos nanam os funcionários implantando redes para o descanso em pleno expediente. Decidiram o dia do traje casual, aquela data em que, no lugar do terno de luxo, as pessoas optam pelos tênis de marca. Não existe informalidade no lugar onde se ganha o pão. Mesmo com incentivo, o que se revela é a velha máscara de guerra. Tão eficiente que já faz parte da natureza.

É por isso que existe perigo na aposentadoria. Sem essa casca, a pessoa se descobre nua como veio ao mundo. Perde a importância, não tem ninguém mais para enganar, as demandas somem e os horários voltam à forma original do caos primordial. Os dias passam como tempestades de verão. O eterno domingo é uma prisão definitiva. Na chamada melhor idade, a compostura vai também para o saco quando se resolve levantar os braços e vibrar as mãos ao som de Mamãe Eu Quero. Desde que a velocidade da tecnologia superou a sabedoria acumulada dos anos, não se sabe o que fazer com os velhos.

O problema é que o mundo transformado em mercadoria faz de tudo para que as pessoas esqueçam a fonte da vitalidade: o exercício pleno do estado de arte, da forma como bem entendemos. Não apenas o consumo cultural, importante, mas não decisivo. O que vale é a criação, fruto da transcendência que devemos buscar em vida. Não se trata de pegar um filminho para o fim-de-semana (e sair comentando "a fo-to-gra-fia!"), ou se reunir com os amigos para arriscar um banquete sob o fragor de charutos e vinho (suspirar por lareiras não salva ninguém do tédio).

Trata-se de manter habitado o palácio interior, o único luxo verdadeiro que dispomos. O importante é a resistência do espírito em qualquer condição social. E isso se consegue longe das ilusões corporativas, por mais gostoso que seja trabalhar com o celular na mão. Ou longe mesmo das ilusões pessoais, como montar uma pousada na serra só porque "gosta de gente", como aconteceu com notório ator que confessou o erro publicamente.

O buraco é mais fundo. É naquele canto, em que você cria o poder de continuar vivo, a partir do que é e sabe e consegue superar, que se dá a batalha. Vire um inventor, um criador, um artífice da cultura imaginada e herdada e enfrente os entrevistadores com a cabeça erguida. Você é, sim, um sobrevivente. Mas, se for tão habitado que pareça um mar, estará perto da divindade. Quem poderá ameaçá-lo?

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 8 de abril de 2008, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: "Sesta", de Emièle.

5 de abril de 2008

AVENIDA FAVORITA DEFINE A PESSOA


Escolher uma rota dentro da megalópole significa assumir uma identidade própria. Cheguei a essa conclusão depois de muito andar pela grande quantidade de caminhos que existem em São Paulo. As principais personalidades definidas pelas grandes avenidas são:

23 DE MAIO - Você é um épico. Gosta de grandes paradas, de marchas sobre Roma, de dizer "aqui, na capital". Ao trafegar pela majestosa avenida 23 de Maio, participa da grandeza dos destinos imperiais. É a favorita dos taxistas. Você está em qualquer lugar da cidade e quer ir para qualquer outro. "Vamos pegar a 23 de maio", decreta o ás no volante. E lá está você, junto a milhares de outros motoristas, no magnífico desfile que desemboca no fim do arco-íris.

9 de JULHO - Você faz parte da modernidade inaugurada nos anos 50. Gosta de passar pelo único túnel decente de todo o caos viário, o que passa debaixo da avenida Paulista (e que não tem o teto assustador como os túneis construídos pelo Maluf). Sabe que depois dessa passagem não há engarrafamento. Gosta da praticidade desse caminho, que te leva aos pontos principais da cidade.

ÁGUAS ESPRAIADAS - Você é malufista. Chama a Roberto Marinho de Águas Espraiadas, para provar que ela existe e que não houve desvio de verbas. Você enche a boca quando entra nessa avenida. Nem faz sombra à 23 de Maio, mas isso não é importante. É para não ser esquecida, é para lembrar o grande fazedor.

REBOUÇAS - Você é saudosista. Ainda insiste em pegar a Rebouças, que jamais anda. Gosta de apontar os plátanos e dizer que eles continuam lá. É a avenida entre os bairros Cerqueira César e Pinheiros, faz parte de uma São Paulo que foi engolida. Toda vez que você entra na Rebouças, lembra do Quarto Centenário de Sampa. Aliás, a Rebouças já existia nos anos 50?

FARIA LIMA - Você é novo rico. Paga uma fortuna para estacionar no Shopping Iguatemi. Convive nas transversais cheias de lugares descolados. Você faz parte de gente bonita. Fala ao celular o tempo todo e bate o salto nos pisos de mármore.

MORUMBI - Você é aristocrata, pois passa todos os dias pela Morumbi e ainda se delumbra com os muros altos cheios de heras e seguranças na frente. Aponta a rua do Silvio Santos e diz que ali só passa quem o apresentador quer. É o que dizem e você repete. Você mora em outro lugar, mas suas veias são azuis. Você enche a boca quando diz "lugar nobre".

PACAEMBU - Você é uma pessoa ocupada. Cruza a cidade, passa pela Lapa, vai até Santana para resolver um pepino. A Pacaembu tem a simpatia dos empreendedores. É útil, dinâmica, clássica.

FRANCISCO MORATO - Você acaba de chegar a São Paulo, vindo do sul do país. Fica apavorado com o que vê. É cartão de visitas do que te espera. Você é forte, você tem fé. Nada o abala.

RETORNO - 1. Imagem de hoje: avenida 23 de Maio, em São Paulo. 2. Claro que esta lista está incompleta. Arrisque seu palpite sobre esse candente assunto.

1 de abril de 2008

VIDA ADULTA


Nei Duclós (*)

Ela começa de forma inesperada. Tomamos as principais decisões, as que influenciam o resto da vida, sem nos dar conta que já não somos crianças. É o que diz um professor, interpretado por Robert Redford, no seu filme “Leões e Cordeiros”, para o estudante que adotou uma postura crítica que beira a indiferença. Virar as costas agora para o problema político pode perpetuar o impasse e roer ainda mais a nação em decadência, diz o mestre. O aprendiz escuta e cai em si.

No sexto ano da guerra do Iraque, com milhares de mortos no passivo, e com uma crise econômica grave ameaçando explodir o consenso financeiro global, Hollywood começa a se livrar da censura. Ou pelo menos da forma obsessiva como encarava a luta contra o terror, desencadeado a partir de 11 de setembro de 2001. Somos coniventes, diz a jornalista interpretada por Meryl Streep, pois sabíamos de todos os truques da manipulação. Assim mesmo, demos carta branca aos falcões. Incentivamos a barbárie destacando líderes oportunistas e predadores, que, sob o signo da revanche, inocularam o vírus mortal anti-democrático.

Esse despertar tardio (a invasão do Iraque já dura mais do que a Segunda Guerra, observa a jornalista) coincide com o fim da era Bush. E é confirmado por outros títulos, que abrem janelas no sufoco das posições irremovíveis. Estão mais disponíveis, pois saem do acanhado circuito dos cinemas e ganham as dimensões mais confortáveis das locadoras. “No vale das sombras”, de Paul Haggins, é sobre a culpa de guerreiros de décadas passadas, que estimularam a juventude a entrar num novo atoleiro. Hoje, paga-se um alto preço. A brutalidade no front substitui os ideais que justificavam a invasão, e a camaradagem interna se rompe pela implantação generalizada e não oficial da tortura.

O militar que tenta consolar Susan Sarandon, no papel da mãe do soldado vindo do front para ser assassinado em casa, recebe de volta um fuzilamento do olhar: é um dos momentos antológicos desta retomada do clássico papel da Sétima Arte, o de refletir consciências e influenciá-las pelo poder de sedução de seus protagonistas.

O terceiro filme que decreta o fim da falsa inocência é “Conduta de risco”, do veterano Sidney Pollack, com George Clooney, o ex-galã de televisão que virou artista de primeiro time do cinema adulto e, dentro dos limites da nação poderosa, radical. O advogado corrupto é despertado pelo surto de honestidade que acomete seu colega (Paul Wilkinson), uma crise confundida com loucura. No mundo virado pelo avesso, a moral precisa ser encarcerada, por ser perigosa. Ela força a tomada de posição a partir do conhecimento.

O cinema é a soma de todos os talentos. Precisa interagir com a vida de verdade, como está voltando a acontecer no mais comercial dos países. A nós, cabe perguntar por que somos tão pobres em abordagens sérias. Nossos filmes, com honrosas exceções, estão confinados ao deboche, à miséria, à eterna mocidade, ao sexo fácil, à violência desmesurada. O máximo que alcançamos é a brutalidade geral, a memória imóvel, o relacionamento amoroso pautado pelo egoísmo. Às vezes, alguém acerta, mas é raro.

Precisamos fazer filmes adultos, sob pena de continuarmos calados, assistindo os outros. Amargamos a falta de representação de algo maior, fruto da convivência amadurecida pelo tempo e pela dor. Ainda somos um país que não se enxerga como deveria.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 1º de abril de 2008, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: Susan Sarandon em "No vale das sombras".