Nei Duclós (*)
Há mistérios confundidos com outros mistérios. É fácil achar que os mensageiros espirituais, por exemplo, são anjos, desses de cinema ou novela, que vivem rodeando as pessoas e acabam se apaixonando por elas. Mas os mensageiros espirituais são de outra natureza. No fundo, não existem, ao contrário dos anjos, tão onipresentes. Surgem de repente para cumprir a improvável missão e somem para sempre. Tomam a forma humana por, talvez, serem a essência do humano. Mas chega de teoria. Vamos aos fatos.
Acontece a toda hora. Éramos muito garotos. Nossa turma deixara a última carona do dia e seguia a pé pela estrada deserta, enquanto a noite, poderosa, começava a tomar forma por todo canto. Pios de corujas, estalos de gravetos, ruflar de asas (seriam morcegos?) nos rodeavam, apertando o coração. Mesmo em grupo, não conseguíamos manter a moral. Não havia nada à vista, nem sequer uma luz. A estrada aos poucos se confundia com o breu. Carros passavam, ameaçadores.
Até que um deles, depois de ter voado rente a nós, decidiu dar meia volta e partir em nossa direção. Gelamos. O que seria? Quem estaria no volante? Quais pessoas se escondiam na escuridão para chegar perto de estudantes apavorados e, naquela altura, completamente sem rumo? Então alguém desceu o vidro da janela do carro e ouviu-se uma voz lá no fundo: “Ei,você não é o Fulano?” Era eu. “Irmão do Ciclano? Pois sou colega do teu irmão, cara. Entrem aí e vamos embora para a cidade”.
Coincidência? Então me digam: por que nunca mais ele surgiu na nossa frente, foi-se embora e não deixou rastros? Teria sido a salvação de outras pessoas em outros momentos? Ou aquela foi sua hora, quando brotou na estrada gelada do meio do pampa e reconheceu alguém, parecido com um amigo?
Não há respostas. Vamos a outro caso, o da moça pobre de calça apertada, que se destacou na multidão no meio da megalópole e nos apontou a rua certa depois de uma tarde de passos perdidos, em que fomos engolidos pelo caos urbano e tínhamos urgência para resolver algumas pendências. Ela se destacou sem exibir nada. Nem seu passo era diferente. Mas havia em seu redor algo maior e mais profundo. Imaginei-a voltando-se bruscamente e partindo para nós com um largo sorriso.
“O endereço que vocês procuram e precisam achar antes da quatro da tarde fica nessa direção. Está perto, não desistam”. Olhei de novo para a mulher. Ela nem sequer tinha olhado para nós. Continuara seu caminho, e misturou-se à massa. Foi um flash aquela orientação, dita fora do mundo, no sonho acordado num momento difícil. Seguimos o rumo apontado e chegamos a tempo para resolver a questão.
Não se trata de providências comuns, fruto das pregações e das certezas. Os mensageiros espirituais são voláteis, não fazem parte de nenhum credo, nenhum sistema de princípios. Eles surgem e somem e pronto. Seriam como lances da divindade em socorro a quem precisa. Porque a vida comum, diária, prosaica, profissional, doméstica, tão real como uma pedra, é no fundo um queijo suíço, cheio de vãos por onde passam, céleres, os pés voadores dos mensageiros espirituais.
Eles não pregam a verdade, não possuem nenhuma vaidade em direção à eterna busca do Absoluto. São puro movimento em forma de gente. Agem na vigília e no sonho. Na imaginação e na evidência. Na vitrine e na escada rolante. No cartório e na escola. Na rua e na torre. Não são capazes, como os anjos, de tomar alguém pelos braços e levá-lo a um hospital. Não possuem carne os mensageiros espirituais.
Eles podem, sim, acordar subitamente o único médico capaz de fazer aquela cirurgia. Na calada da noite, o doutor, exausto de tantos dias trabalhados, veste-se rapidamente e segue uma estrela. Chega então à sala de operações para resolver um impasse.
É assim que eles agem. Podem estar ao teu lado. Mas não por muito tempo. Por isso abra os olhos. Eles chegam a qualquer momento. E no instante seguinte, não estarão mais aqui. Mas deixarão algo em tuas mãos, a alegria de compartilhar um mistério, a chance de participar da grandeza que sempre nos escapa. Somos então tocados pela graça dos mensageiros espirituais, esses vulneráveis ajudantes do Bem, que tanto nos faz falta.
RETORNO - 1. (*) Crônica publicada neste fim des semana na revista Donna DC, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: Fada madrinha, quadro de Juliana Duclós. 3. Recebo a seguinte correspondência, que muito me honra:
Prezado Nei Duclós:
Há mistérios confundidos com outros mistérios. É fácil achar que os mensageiros espirituais, por exemplo, são anjos, desses de cinema ou novela, que vivem rodeando as pessoas e acabam se apaixonando por elas. Mas os mensageiros espirituais são de outra natureza. No fundo, não existem, ao contrário dos anjos, tão onipresentes. Surgem de repente para cumprir a improvável missão e somem para sempre. Tomam a forma humana por, talvez, serem a essência do humano. Mas chega de teoria. Vamos aos fatos.
Acontece a toda hora. Éramos muito garotos. Nossa turma deixara a última carona do dia e seguia a pé pela estrada deserta, enquanto a noite, poderosa, começava a tomar forma por todo canto. Pios de corujas, estalos de gravetos, ruflar de asas (seriam morcegos?) nos rodeavam, apertando o coração. Mesmo em grupo, não conseguíamos manter a moral. Não havia nada à vista, nem sequer uma luz. A estrada aos poucos se confundia com o breu. Carros passavam, ameaçadores.
Até que um deles, depois de ter voado rente a nós, decidiu dar meia volta e partir em nossa direção. Gelamos. O que seria? Quem estaria no volante? Quais pessoas se escondiam na escuridão para chegar perto de estudantes apavorados e, naquela altura, completamente sem rumo? Então alguém desceu o vidro da janela do carro e ouviu-se uma voz lá no fundo: “Ei,você não é o Fulano?” Era eu. “Irmão do Ciclano? Pois sou colega do teu irmão, cara. Entrem aí e vamos embora para a cidade”.
Coincidência? Então me digam: por que nunca mais ele surgiu na nossa frente, foi-se embora e não deixou rastros? Teria sido a salvação de outras pessoas em outros momentos? Ou aquela foi sua hora, quando brotou na estrada gelada do meio do pampa e reconheceu alguém, parecido com um amigo?
Não há respostas. Vamos a outro caso, o da moça pobre de calça apertada, que se destacou na multidão no meio da megalópole e nos apontou a rua certa depois de uma tarde de passos perdidos, em que fomos engolidos pelo caos urbano e tínhamos urgência para resolver algumas pendências. Ela se destacou sem exibir nada. Nem seu passo era diferente. Mas havia em seu redor algo maior e mais profundo. Imaginei-a voltando-se bruscamente e partindo para nós com um largo sorriso.
“O endereço que vocês procuram e precisam achar antes da quatro da tarde fica nessa direção. Está perto, não desistam”. Olhei de novo para a mulher. Ela nem sequer tinha olhado para nós. Continuara seu caminho, e misturou-se à massa. Foi um flash aquela orientação, dita fora do mundo, no sonho acordado num momento difícil. Seguimos o rumo apontado e chegamos a tempo para resolver a questão.
Não se trata de providências comuns, fruto das pregações e das certezas. Os mensageiros espirituais são voláteis, não fazem parte de nenhum credo, nenhum sistema de princípios. Eles surgem e somem e pronto. Seriam como lances da divindade em socorro a quem precisa. Porque a vida comum, diária, prosaica, profissional, doméstica, tão real como uma pedra, é no fundo um queijo suíço, cheio de vãos por onde passam, céleres, os pés voadores dos mensageiros espirituais.
Eles não pregam a verdade, não possuem nenhuma vaidade em direção à eterna busca do Absoluto. São puro movimento em forma de gente. Agem na vigília e no sonho. Na imaginação e na evidência. Na vitrine e na escada rolante. No cartório e na escola. Na rua e na torre. Não são capazes, como os anjos, de tomar alguém pelos braços e levá-lo a um hospital. Não possuem carne os mensageiros espirituais.
Eles podem, sim, acordar subitamente o único médico capaz de fazer aquela cirurgia. Na calada da noite, o doutor, exausto de tantos dias trabalhados, veste-se rapidamente e segue uma estrela. Chega então à sala de operações para resolver um impasse.
É assim que eles agem. Podem estar ao teu lado. Mas não por muito tempo. Por isso abra os olhos. Eles chegam a qualquer momento. E no instante seguinte, não estarão mais aqui. Mas deixarão algo em tuas mãos, a alegria de compartilhar um mistério, a chance de participar da grandeza que sempre nos escapa. Somos então tocados pela graça dos mensageiros espirituais, esses vulneráveis ajudantes do Bem, que tanto nos faz falta.
RETORNO - 1. (*) Crônica publicada neste fim des semana na revista Donna DC, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: Fada madrinha, quadro de Juliana Duclós. 3. Recebo a seguinte correspondência, que muito me honra:
Prezado Nei Duclós:
Nossos cumprimentos por seus "relatos" no Donna DC deste domingo (30.03). Mensagens assim, simples, verdadeiras, poéticas até, são excelentes lenitivos para a "vida" e para as "relações humanas". Os mensageiros, próximos ou mais distantes, são, seguramente AMIGOS que reduzem o peso de alguns "fardos" e estendem a mão, ante perigos e dificuldades mais ásperas. Ideal é termos o "peito" aberto e a consciência desperta para percebê-los, seja no momento em que "aparecem", seja no instante seguinte, quando, das situações, tiramos grandes lições.
Aproveito o ensejo e, invadindo seu espaço, gostaria de compartilhar uma experiência "familiar", no mesmo sentido. E, também, solicitar sua autorização para difusão, em veículo impresso (revista espírita) seu texto tão oportuno.
Aproveito o ensejo e, invadindo seu espaço, gostaria de compartilhar uma experiência "familiar", no mesmo sentido. E, também, solicitar sua autorização para difusão, em veículo impresso (revista espírita) seu texto tão oportuno.
Cordialmente, Marcelo Henrique Pereira, Presidente da Associação dos Divulgadores do Espiritismo de Santa Catarina Secretário para a promoção da juventude da Confederação Espírita Pan-Americana . Editor-Chefe da Revista Espírita HARMONIA.
4. O texto de Marcelo Henrique Pereira é impressionante: relata o caso verdadeiro acontecido anos atrás em que um ancião, surgido do nada, curou a perna da sua irmã. Assim como veio, se foi. Sumiu, segundo testemunhas, enquanto caminhava no ermo, um lugar deserto onde pediu para ser deixado.
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