Havia solenidade nas refeições. Uma hierarquia definia os papéis à mesa: pais nas cabeceiras, filhos de um lado e filhas do outro. Os menores estavam mais próximos da mãe. Para evitar tumulto, devido à quantidade de comensais, não era permitido conversar mais do que o necessário. “Passe o arroz” nunca poderia ser substituído por “briguei hoje no colégio”. Assim como as palavras, as porções eram rigidamente controladas. Nunca faltou nada porque a disciplina colocava a voragem natural da prole em limites suportáveis.
O debate aberto, que descambava para a política ou a anedota, conforme a disposição do dia e a eventual presença de convidados, só era franqueado no momento da sobremesa e do cafezinho. Quando o pai viajava, a temperatura da conversa subia até a defecção precoce dos menores, que debandavam sem esperar que os mais velhos se retirassem antes, como era costume.
Havia diversidade nos doces servidos após o almoço em ocasiões especiais – domingos, aniversários ou quando havia visita. Mas a gelatina recheada de pêssego com floco firme de merengue em cima era nossa favorita. Vinha coroar refeições antológicas, com pratos que se foram junto com sua autora, como o peixe desfiado e misturado com farofa, o rocambole quilométrico de pele crocante, o feijão perfeito que, enriquecido de vários ingredientes e temperos, tornava as segundas-feiras uma data tão esperada quanto os fins-de-semana.
Ninguém comia sem camisa, mesmo no mais tórrido verão. Ninguém deixava de se pentear ou mesmo deveria perder o horário sagrado em que éramos chamados para o ritual. O ágape não começava se o pai não decidisse. A tortura mais recorrente era quando um telefonema importante o segurava por um tempo que nos transformava em vítimas do Holocausto.
O cafezinho vinha de um longo processo caseiro. Sacos da semente crua eram comprados regularmente. Depois, havia os sábados de torrefação, de grossa catinga. A matéria-prima era guardada em lata, aberta todos os dias para que fosse moída no moedor manual. Era uma espécie de punição, reduzir a pó, no muque, a semente negra que permitiria o final das refeições. Mas o resultado compensava. O aroma do café e a fumaça do cigarro dos adultos encerravam o espetáculo.
Por um bom tempo, a lenha servia de combustível para o fogão e a água do chuveiro. Soprar a brasa e esperar o momento tanto do banho quanto da comida eram hábitos de uma civilização hoje perdida, que dava um trabalhão danado, mas que povoou os anos de formação. A modernidade só chegou tempo depois, quando uma grande mesa de fórmica convivia com paredes pintadas no chamado estilo funcional. As cores variadas que não combinavam desesperavam a mãe, atrapalhada ao explicar a novidade às amigas.
O mundo masculino decidia tudo, mas vivíamos no regaço materno. Rodeávamos aquela que jamais viajava e que voltava vagarosamente do emprego para adiar o furacão doméstico. Quando todos foram embora, ela ficou à espera do carteiro, escasso de novidades. Olhava longamente para a rua vazia, onde sobrava espaço e o barulho das novas gerações não a tranqüilizavam como antigamente.
Foi-se devagarinho, como um pássaro ferido. Mãe da mesa farta e do rigor que nos acompanha, ela é o símbolo dessa vida que cultivava a solenidade diária, para fugir do estilo prosaico que acabou tomando conta da cidadania.
RETORNO - (*) Crônica publicada dia 11 de março de 2008 no Caderno Variedades, do Diário Catarinense.
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12 de março de 2008
HORA DA MESA
Nei Duclós (*)
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