Nei Duclós (*)
Já fui sócio-proprietário de uma sala de cinema. Exercia uma função estratégica: era o porteiro. A vizinhança fazia fila para ver os filmes mudos, que a velha máquina projetava no lençol estendido na parede dos fundos de casa. Lá apareciam, invariavelmente, Charles Chaplin (que chamávamos de Carlitos), O Gordo e o Magro e outros comediantes que não identifico mais.
Nos cinemas da cidade, já existia o Cinemascope, aquela tela enorme que provava a existência de Moisés na pele de Charlton Heston. Como atrair gente com tamanha concorrência? Tínhamos um acervo limitado, e a platéia começou a se cansar. Certa feita, um garoto muito pequeno queixou-se, choroso, do repeteco, mas ouviu a frase salvadora do adulto que o acompanhava: “Fica quieto, guri, que depois tem sagu”.
As toneladas de sagu que se fazia em casa costumavam sobrar em panelas enormes. Gelado, era servido, de graça, aos potes, a ávidos cinéfilos. Idéia, claro, do meu irmão nascido empresário, a de agregar valor à gasta programação. A entrada era um custo, mas o sagu compensava. Garantia quórum para o porteiro de olhos brilhantes diante dos lucros.
Era um troço organizado. As pessoas iam até o caixa, devidamente gerenciado pelo meu irmão, e lá eles recebiam uma ficha colorida de plástico duro, numerada. Seria o maior charme se as cadeiras fossem personalizadas, mas a ficha era apenas a coisa mais próxima de um bilhete de cinema que dispúnhamos. Servia para dar credibilidade ao negócio, já incrementado pela existência de um lanterninha.
A ficha vinha dos cassinos, do jogo pesado, tipo de pecado que devassava as virtudes do cofre, exposto na sala para quem passasse na rua. Um cofre que meu pai religiosamente abria para lá depositar, ou tirar, tudo o que era inacessível à infância. Dizem que chamava a atenção da cobiça alheia, mas nunca fomos invadidos ou assaltados.
Naquele tempo, podia-se ter um cofre bem à vista de todos e ainda dormir na calçada no verão, coisa que meu pai fez regularmente até 1964. Mas isso faz parte de um Brasil que foi jogado no lixo, quando havia paz na diferença, soberania nacional e segurança na cidade e no campo. Coisas antigas, como se sabe. Trocamos tudo isso pelas promessas de um futuro melhor.
Cobrimos os trilhos com asfalto de má qualidade, apodrecemos os dormentes, lotamos de automóveis os caminhos feitos para carroças, privatizamos o ensino e a saúde, aprovamos os alunos por decreto, enchemos a cabeça da meninada com bobagens, e depois nos perguntamos por que o país ficou assim. Ora, ficou dessa maneira porque isso faz parte da natureza humana, entende? Isso acontece em qualquer país do mundo, entende? Sermos campeões mundiais em homicídios é uma coisa normal, entende?
O que chamam de economia informal era nossa brincadeira de criança. Pela quantidade de pessoas que sobrevivem no nosso capitalismo de farol (ou sinaleira) podemos notar que o país não conseguiu amadurecer. Os negócios da infância hoje são mais pesados. Nada comparado ao árduo trabalho de montar um cinema completo e roubar espectadores de Hollywood.
O dinheiro que arrecadávamos era todo reinvestido, pois tínhamos uma meta maior. Para isso, criamos novos empreendimentos. Quermesse, onde eu me encarregava da pescaria e das latas empilhadas. Rifas, como a vez em que vendemos a chance de alguém ganhar um violão, sem dizer que se tratava de um pequeno instrumento de plástico vagabundo. Quando meu irmão foi entregar a prenda para o feliz ganhador, que estava fazendo a barba no lugar sagrado onde os homens adultos discutiam política e futebol, quase foi linchado. O barbeiro, homem experiente que exibia sua perna queimada por um lança-chamas na Segunda Grande Guerra, deu-lhe um corridão. “Isso é violão que se apresente, seu! ”. Para nós, não houvera má fé. Ninguém perguntou que tipo de violão era.
A meta maior era nosso time de futebol, que ainda dispunha das mensalidades dos sócios (todos os guris da rua e arredores). Soube que o mesmo time, 50 anos depois de fundado por cinco garotos, foi campeão da cidade em 2007. Algo sobreviveu daquela época: nós, hoje mais antigos que nossos pais; e o time que ganhou o campeonato na raça, graças aos meninos que mantêm a saga que vem de longe, a do país que um dia resgatará sua grandeza.
RETORNO - (*) Crônica publicada neste fim-de-semana na revista Donna DC, do Diário Catarinense.
Já fui sócio-proprietário de uma sala de cinema. Exercia uma função estratégica: era o porteiro. A vizinhança fazia fila para ver os filmes mudos, que a velha máquina projetava no lençol estendido na parede dos fundos de casa. Lá apareciam, invariavelmente, Charles Chaplin (que chamávamos de Carlitos), O Gordo e o Magro e outros comediantes que não identifico mais.
Nos cinemas da cidade, já existia o Cinemascope, aquela tela enorme que provava a existência de Moisés na pele de Charlton Heston. Como atrair gente com tamanha concorrência? Tínhamos um acervo limitado, e a platéia começou a se cansar. Certa feita, um garoto muito pequeno queixou-se, choroso, do repeteco, mas ouviu a frase salvadora do adulto que o acompanhava: “Fica quieto, guri, que depois tem sagu”.
As toneladas de sagu que se fazia em casa costumavam sobrar em panelas enormes. Gelado, era servido, de graça, aos potes, a ávidos cinéfilos. Idéia, claro, do meu irmão nascido empresário, a de agregar valor à gasta programação. A entrada era um custo, mas o sagu compensava. Garantia quórum para o porteiro de olhos brilhantes diante dos lucros.
Era um troço organizado. As pessoas iam até o caixa, devidamente gerenciado pelo meu irmão, e lá eles recebiam uma ficha colorida de plástico duro, numerada. Seria o maior charme se as cadeiras fossem personalizadas, mas a ficha era apenas a coisa mais próxima de um bilhete de cinema que dispúnhamos. Servia para dar credibilidade ao negócio, já incrementado pela existência de um lanterninha.
A ficha vinha dos cassinos, do jogo pesado, tipo de pecado que devassava as virtudes do cofre, exposto na sala para quem passasse na rua. Um cofre que meu pai religiosamente abria para lá depositar, ou tirar, tudo o que era inacessível à infância. Dizem que chamava a atenção da cobiça alheia, mas nunca fomos invadidos ou assaltados.
Naquele tempo, podia-se ter um cofre bem à vista de todos e ainda dormir na calçada no verão, coisa que meu pai fez regularmente até 1964. Mas isso faz parte de um Brasil que foi jogado no lixo, quando havia paz na diferença, soberania nacional e segurança na cidade e no campo. Coisas antigas, como se sabe. Trocamos tudo isso pelas promessas de um futuro melhor.
Cobrimos os trilhos com asfalto de má qualidade, apodrecemos os dormentes, lotamos de automóveis os caminhos feitos para carroças, privatizamos o ensino e a saúde, aprovamos os alunos por decreto, enchemos a cabeça da meninada com bobagens, e depois nos perguntamos por que o país ficou assim. Ora, ficou dessa maneira porque isso faz parte da natureza humana, entende? Isso acontece em qualquer país do mundo, entende? Sermos campeões mundiais em homicídios é uma coisa normal, entende?
O que chamam de economia informal era nossa brincadeira de criança. Pela quantidade de pessoas que sobrevivem no nosso capitalismo de farol (ou sinaleira) podemos notar que o país não conseguiu amadurecer. Os negócios da infância hoje são mais pesados. Nada comparado ao árduo trabalho de montar um cinema completo e roubar espectadores de Hollywood.
O dinheiro que arrecadávamos era todo reinvestido, pois tínhamos uma meta maior. Para isso, criamos novos empreendimentos. Quermesse, onde eu me encarregava da pescaria e das latas empilhadas. Rifas, como a vez em que vendemos a chance de alguém ganhar um violão, sem dizer que se tratava de um pequeno instrumento de plástico vagabundo. Quando meu irmão foi entregar a prenda para o feliz ganhador, que estava fazendo a barba no lugar sagrado onde os homens adultos discutiam política e futebol, quase foi linchado. O barbeiro, homem experiente que exibia sua perna queimada por um lança-chamas na Segunda Grande Guerra, deu-lhe um corridão. “Isso é violão que se apresente, seu! ”. Para nós, não houvera má fé. Ninguém perguntou que tipo de violão era.
A meta maior era nosso time de futebol, que ainda dispunha das mensalidades dos sócios (todos os guris da rua e arredores). Soube que o mesmo time, 50 anos depois de fundado por cinco garotos, foi campeão da cidade em 2007. Algo sobreviveu daquela época: nós, hoje mais antigos que nossos pais; e o time que ganhou o campeonato na raça, graças aos meninos que mantêm a saga que vem de longe, a do país que um dia resgatará sua grandeza.
RETORNO - (*) Crônica publicada neste fim-de-semana na revista Donna DC, do Diário Catarinense.
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