14 de novembro de 2007

GETÚLIO E GRACILIANO: O OUTRO LADO


Sempre desconfiei que havia algo errado na história de Graciliano Ramos e Getúlio Vargas. O poeta Sidnei Schneider, de Porto Alegre, que participou do debate na Feira do Livro no dia 8 de novembro, “A nova poesia não nasceu nem vai nascer” (que teve a mesa composta por Marco Celso Viola, Dilan Camargo e eu), coloca num artigo alguns pontos importantes, que lançam luzes sobre o episódio que envolveu as duas grandes personalidades. Selecionei alguns trechos que publico aqui. Atenção: o que vem a seguir é de autoria de

Sidnei Schneider

A partir de dados do livro Os Saltimbancos da Porciúncula, de Antonio Carlos Villaça, sobre a prisão do escritor Graciliano Ramos e a intervenção de Getúlio Vargas para a sua soltura, Sidnei Schneider lança luz sobre o relacionamento entre o governo e os mais importantes intelectuais da época

No livro Os Saltimbancos da Porciúncula, anotações do jornalista e escritor Antonio Carlos Villaça (1928-2005) sobre personalidades do mundo literário, surge alguma luz sobre fatos que envolvem o escritor Graciliano Ramos e o presidente Getúlio Vargas. Inicialmente, examinemos o texto:

Graciliano estava preso, sem processo. Aquilo era um absurdo. Pois, certa manhã, José Lins do Rego, seu grande amigo, foi ao Palácio da Guanabara para conversar com Herman Lima, oficial-de-gabinete de Getúlio, que só lhe chamava Tigipió, por causa do seu livro de contos. Getúlio adorava dar apelidos. José Lins ia pedir a Herman Lima que pedisse a Getúlio a libertação de Graciliano. O cearense prometeu que sim, que ia pedir a Getúlio. Assim fez. Quando sentiu que o presidente estava de bom humor, fez o pedido.

Getúlio respondeu (e Herman Lima contou-me a cena) – não mandei prender Graciliano, não mando soltar Graciliano. Mas telefone em seu nome ao general Pinto (Francisco José Pinto, chefe da Casa Militar, ele usava pincenê) e lhe peça para telefonar ao Filinto, perguntando por que o Graciliano está preso. Veja-se a psicologia getuliana, em todo o seu esplendor.

Assim fez Herman Lima, com solicitude. Foi tiro e queda. Filinto mandou soltar Graciliano. Este saiu da cadeia e foi hospedar-se em casa do seu amigo Lins do Rego, na rua Alfredo Chaves, em Botafogo. José Lins estava feliz.


Diga-se que Villaça não é exatamente alguém disposto a defender posição em relação a Vargas, está mais interessado no pitoresco e na anedota que reconta literariamente, como se pode ver em outro trecho do livro, no qual fala de dois acidentes automobilísticos envolvendo o automóvel oficial da presidência. Todavia acrescenta dados, cita a fonte e ficamos sabendo como Graciliano foi posto em liberdade pela intervenção do Presidente.

Graciliano Ramos, diretor de Instrução Pública de Alagoas, tendo já publicado Caetés (1933) e São Bernardo (1934), de fato é preso como subversivo, sem provas de acusação, na cidade de Maceió em março de 1936, num clima pós-levante da Aliança Nacional Libertadora, encabeçada pelo PCB, de novembro de 1935. Demitido do cargo, é enviado para o Recife e de navio para o Rio de Janeiro, onde permanece detido até janeiro de 1937. Na prisão, escreve o romance Angústia, publicado ainda em 1936; as famosas Memórias do Cárcere, ele começaria a redigir dez anos depois, sendo editadas apenas em 1953, logo após a sua morte.

Chama a atenção que comunistas e fascistas estejam juntos na prisão, sugerindo que algo devia estar errado na política de oposição do incipiente PCB ao governo Vargas. Isso num momento em que a política independente e desenvolvimentista do governo manda às favas as pressões do imperialismo inglês e os seus barões do café, fortalece a indústria nacional proibindo a importação de artigos de luxo e de produtos já fabricados aqui, taxa em 8% as remessas de lucro das empresas estrangeiras, nacionaliza as minas, inventa a legislação trabalhista e atende reivindicações dos trabalhadores consideradas até então mero “caso de polícia”.

Jorge Amado, num livro de entrevistas a sua tradutora francesa Alice Raillard, conselheira da editora Gallimard, dá mais informações: Getúlio tinha boas relações com os escritores, ele lia muito. (...) Com alguns, José Lins do Rego, por exemplo, Getúlio até mantinha um relacionamento bastante freqüente. E quando Graciliano Ramos saiu da prisão, obteve um emprego no Ministério da Educação. Ele e muitos outros, não é?.

Em 1937, o ano mesmo da sua libertação, Graciliano Ramos recebe do governo o Prêmio do Ministério da Educação pelo livro infanto-juvenil, ainda hoje de todo recomendável, A Terra dos Meninos Pelados. O fundamental Vidas Secas, um dos livros mais bonitos da nossa literatura, é publicado em 1938. No mesmo ano, ao cair da noite de 10 de maio, hordas integralistas assaltam o Palácio Guanabara na tentativa de eliminar Getúlio, mas são surpreendidas pela resistência da família Vargas de armas na mão, até às cinco horas da manhã, quando o levante fascista é enfim sufocado.

Em 1939 ocorre a aludida nomeação de Graciliano para Inspetor Federal no Ensino Secundário. Em 1941 o governo cria a Companhia Siderúrgica Nacional e dois anos depois a Vale do Rio Doce, empresas essenciais para alavancar o desenvolvimento do país. No ano de 1945, a convite de Luis Carlos Prestes, Graciliano filia-se ao PCB. Como se sabe, é um momento em que o partido já mudou a sua política. Após dar apoio a Vargas contra o nazi-fascismo durante a Segunda Guerra, avança e passa a compreender melhor o que está em causa no Brasil, equacionando na prática a sua estratégia: as forças nacionais, democráticas e populares de um lado e o imperialismo com seus lacaios de outro.

O PCB participa então da campanha Constituinte com Getúlio em 1945, com Prestes e Vargas no mesmo palanque – a foto é famosa – e apóia o Presidente contra os golpistas e pseudoliberais até o fim do seu governo, em outubro do mesmo ano. Aliás, essa política e estratégia recebem grande apoio popular, como mostram a Constituinte de 1946 - Prestes eleito senador com número recorde de votos e uma boa bancada na Câmara dos Deputados - e o extraordinário crescimento do número de militantes, que atinge cem mil.

Temos, então, Graciliano e Getúlio lado a lado. Depois disso, vem a eleição de Getúlio à Presidência (1950), criação da Petrobrás (1951-53), nacionalização das reservas minerais e energéticas (1953), nova lei da remessa de lucros, os alicerces da Eletrobrás, o aumento de 100% no salário mínimo (1954) e o que mais se sabe.

Quem ainda hoje pretende cobrar coerência de Graciliano por essa trajetória, ou anda muito desavisado quanto à história do país, sendo esta a melhor das hipóteses, ou bandeou-se com suas idéias, inconsciente disso ou não, para o lacerdismo-entreguista que naufragou com FHC e teima em boiar por aí nauseando o ar.

RETORNO - 1. Imagem de hoje: Capa do livro infanto-juvenil de Graciliano Ramos premiado pelo Ministério da Educação do governo Getúlio Vargas.

2. Invocado com a falta de comentários, acabei recebendo pelo Orkut a seguinte manifestação, assinada por Leonardo Batista, de Cachoeira do Sul (RS): " Já há algum tempo estou querendo entrar em contato com o senhor, desde que li um texto seu intitulado As Verdades Definitivas ( DC 24/Junho). Não me lembro de outra vez na vida em que tenha me identificado tanto com um texto! A sua capacidade de síntese foi impressionante, bastou o primeiro parágrafo pra resumir o que eu ainda levaria alguns anos pra conceber! Porém a decisão de procurá-lo pra agradeçer veio justamente quando lí e reconheci em O Sopro Imortal ( DC 11/Nov.), também arrebatador, uma possível continuidade do primeiro. "... Acumular historias, informações, falas, não importa. O que vale é o gatilho do texto, a faísca que bota fogo na montanha de coisas que juntamos, o grude que garante a massa, quando tudo faz sentido. O gatilho aciona o sopro imortal..." Visceral!!Tenha certeza de que o senhor sacode muitas almas!! Obrigado!!"

Quem sacode a alma do escritor são leitores como você, Leonardo. Muito obrigado.

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