28 de março de 2007

A VERGONHA PLANTADA



Um mal entendido na fila do pãozinho deixou o cidadão que estava na minha frente bastante irritado. “Tenho cara de folgado?” perguntava ele para a atendente. “Está escrito na minha testa que eu quero passar à frente de alguém?” Tentei colocar panos quentes, dizendo que a balconista tinha se equivocado. "Nada disso", replicou, "o brasileiro é assim mesmo", querendo com isso explicar o motivo do mau comportamento que ele via naquela trabalhadora do comércio. Aproveitei para exercer minha catequese: “Todos somos brasileiros”, falei para o cidadão inconformado por ter sido confundido com um qualquer. “Pois eu não gosto de ser brasileiro”, disse, encerrando a conversa.

A nacionalidade está ligada, grudada, ao mau comportamento, ao vício, ao crime, à falsidade, à corrupção, à mentira, à indiferença. Nenhum outro povo ou nação carrega semelhante estigma. Somos hoje a grande vergonha do mundo, pelo menos segundo nossa própria percepção. Há um consenso de que o Brasil não presta, que os brasileiros são incorrigíveis e que a nação, portanto, fracassou. Como é uma mentalidade amplamente disseminada, que não encontra contestação, trata-se de um fenômeno de massa, que não pode ser atribuído à geração espontânea.

Não é porque existiram sucessivos governos ligados à corrupção que somos tão auto-destrutivos. A Itália passou décadas dando grande vexames na política e ninguém diz que o italiano é um bunda suja. “Como bom italiano” disse esses dias o Angeli, da Folha, referindo-se a algum hábito seu. Angeli, o mais brasileiro dos cartunistas, se acha italiano. Alguma coisa está errada. A Coréia exibiu por vários anos as brigas coletivas no Parlamento e todo mundo acha a Coréia um encanto. Os alemães mataram quem bem quiseram na Segunda Guerra e ninguém se refere aos alemães como aqueles desgraçados, mas sim como são eficientes e trabalhadores. Os Estados Unidos invadem todo mundo, instauram ditaduras, expõem suas barbaridades na indústria audiovisual e o que mais se escuta é como a América é fantástica. Que civilização, que way of life!

Não é, portanto, porque tivemos ou temos governos corruptos que nos achamos tão miseráveis. Também não é pela impunidade. O Kissinger, por exemplo, que destruiu a democracia e o povo chileno nos anos 70, está solto, e nem por isso os americanos são achincalhados por esse motivo. O Pinochet morreu de velho e os chilenos estão de cabeça erguida. As máfias chinesa e japonesa aprontam nos cinco continentes e não existem países mais admiráveis do que a China e o Japão. Imaginem se as sacanagens apresentadas pelos bandidos orientais transformassem a imagem dos países asiáticos num monte de bosta, como acontece em relação ao Brasil.

Sentimos vergonha do Brasil porque essa vergonha foi plantada, de maneira metódica, obedecendo a um plano político bem elaborado. É a obra fundamental do regime de 1964, que ainda está em vigor, destruir a auto-estima do Brasil para assim a cobiça interna e externa locupletarem-se com o repasto. O que atrapalhava o saque desmesurado de tudo o que o país acumulou de 1930 a 1964, era exatamente a auto-estima. Tínhamos Tom Jobim, Guimarães Rosa, Pelé, Antonio Callado. Não podíamos ser tão pestilentos. Era preciso então matar na fonte o que formavam os gênios – educação e saúde, moeda estável, disseminação em rede do emprego, paz no campo e na cidade.

Veio a Reforma da Educação, do Jarbas Passarinho, e tudo começou a degringolar, até chegarmos às escolinhas de lata. Colocaram a economia na mão de sujeitos como Bob Fields, que se lixava para a existência do país, como foi denunciado na época em que se envolveu num escândalo largamente difundido na imprensa. Ao mesmo tempo em que se destruíam as fontes da auto-estima, se incensavam as nulidades, para provar que a falta de caráter é que dá camisa no Brasil.

Nos meios de comunicação, entregaram-se as concessões das grandes redes para pessoas desprezíveis, como o Gargalhada Sinistra, o Pastor da Merreca, o Jornalista dos Plenos Poderes, o Genro da Caixinha e assim por diante. Na área acadêmica, foi demolido o mito do Brasil Soberano e todas as suas conquistas. Pespegaram o termo ditadura ao nome de Vargas, “esquecidos” do governo constituinte de 1933 a 1937 e o eleito pelo voto popular de 1950 a 1954. O Estado Novo, que foi um golpe contra a porção nazista do exército e que levou o país para a guerra contra o nazifascismo na Europa, a implantação da siderurgia nacional e o equilíbrio das finanças públicas, é visto como um anátema histórico.

Assim também foi destruído o heroísmo, e esqueceram de propósito o longo reinado de Dom Pedro II, tão bem analisado por Monteiro Lobato num texto antológico contra a República Velha e a favor da cordura, do bom senso, da presença poderosa e positiva do Imperador na vida da nação soberana. O objetivo é chamar Lobato de racista, Manuel Bandeira de reacionário, Brizola de caudilho, brasileiro de covarde. O objetivo é dizer que não lutamos por nossa independência, que fizemos quarteladas e que nada há de heróico no país. E se você se insurge contra isso é chamado de saudosista amargurado, monarquista, ditador ou que sei mais o quê.

Assim se destrói a auto-estima. Assim se implanta a vergonha de ser brasileiro.

RETORNO - Imagem de hoje: "Av. Ipiranga, menina com máscara de papelão e seu irmão", de Marcelo Min.

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