7 de março de 2007

LABIRINTO EM DESTERRO (*)



Nei Duclós

Nunca sei ao certo se existem duas ou três travessas antes de chegar ao terminal. A dúvida vem da falta de direção e de memória urbana, desvantagens que fazem parte da minha natureza, e que se manifestam nos passos indecisos toda vez que me aventuro por aquela região. Tento até decorar o nome das pequenas ruas que nascem da curva da cidade onde fica um colégio, um edifício da Marinha e alguns órgãos públicos fora de mão, como a secretaria do Trabalho. Elas desembocam na praça central, que divide a cidade em duas porções bem distintas. Esta, de que falo, e que é formada por ruazinhas estreitas, sombreadas em excesso e com um ar de abandono que deve ser assustador em domingos e feriados (quando me encontro bem longe do centro, refugiado num canto da ilha-cidade). E a outra, comercial, aparentemente buliçosa e viva, mas que também oferece um espetáculo aterrador, pela solidão em contraste com a vibração anterior, quando não há expediente e todos se recolhem nos imensos espaços vazios desta capital agora atulhada de gente.

Sim, é uma cidade de mistérios. Lembra a explicação que vi num documentário sobre a estrutura do átomo. Há um centro, o núcleo, dizem os físicos, e muito longe dali, depois de longos espaços vazios, o bulício dos elétrons. A matéria é composta de “nadas” imensos pontuados por alguma presença indecifrável, como é o caso de partículas atômicas. Talvez a região que visito regularmente (devido a uma atividade extra que agora não convém abordar) não exclua essa essência das coisas, a de que existem vácuos entre objetivos bem concretos e distintos, que acabam nos confundindo quando deixamos o carro e a condução de lado e nos aventuramos numa caminhada. Sempre que apareço por lá, em busca de um ponto bem objetivo, troco as pernas achando que entrei na rua certa. Mas, invariavelmente, me confundo.

Essas ruelas estranhas oferecem insumos para minha desorientação. Elas são interligadas por pequenos corredores, portanto não temos nenhuma dúvida de que acharemos o lugar que procuramos, já que se pode voltar atrás utilizando esses atalhos naturais. Mas isso faz parte da armadilha. Você tem a certeza de que está indo na travessa certa, descobre que está enganado quando chega ao fim dela (pois onde quero chegar fica na última quadra, no lado oposto da praça). Aí preciso contornar para entrar na outra rua ou então dar meia volta e pegar o corredor providencial. O problema é que as ruas misteriosamente se multiplicam, por mais que isso possa parecer estranho. Eram duas, ou três, mas parece haver uma infinidade de opções, que me fazem derreter quando há verão e temer pela saúde diante do vento encanado, quando há inverno.

Depois de reter na memória, por muitos anos, o caso do cientista que enlouqueceu quando foi estudar a infinidade de números que existem entre dois números inteiros – conjunto que ele batizou de Aleph – descobri, graças à internet e à curiosidade aguçada pela ignorância, que o dedicado estudioso é o matemático alemão Georg Cantor. Na primeira vez que mencionei seu sobrenome, fui corrigido na pronúncia, pois o filósofo em questão jamais teve qualquer ligação com a profissão de crooner. Assim, pronunciando Cantor como quem passa a mãos pelos cantos do problema para ver se é possível descobrir alguma solução, vi que entre a sede dos Correios, situada em frente à praça, e o terminal, existe um número infinito dessas ruas enigmáticas.
Quando chega a vez de ir lá confirmo essa suposição. Nunca chego ao lugar limite, onde as pessoas vão pegar os ônibus, pois antes dele há essa encruzilhada de caminhos. Costumo descobrir uma nova alameda na procura interminável em direção ao lugar que eu desejo chegar. Há um aleph urbano escondido nessa parte baixa da cidade e só tive certeza disso quando prestei mais atenção ao que elas guardam em suas portas encardidas, seus edifícios tombados, seu ar de província do século 19. Tem pastelaria, sebo, padaria, armarinho, xerox e outros estabelecimentos indecifráveis, que talvez estejam lá apenas para atender fantasmas. Foram esquecidos pelo resto da cidade, mais ocupada em grandes viadutos, fluxos migratórios, a violência que aos poucos se instala na outrora pacata Desterro.

É uma espécie de reserva urbana contrariada por exercer o seu papel. Vejo essa falta de sintonia nos habitantes que ficam parados por lá ou passam me olhando com curiosidade. Eles têm o aspecto de antigas fotografias, vestem roupas que costumava ver na minha infância e encarnam tipos há muito desaparecidos. O mendigo-filósofo, o desocupado prestativo, a aposentada especialista em cada lugar perdido naquele ermo. Costumo perguntar sempre onde fica o local exato que busco e sou atendido. Mas basta eu me afastar um pouco para me envolver novamente no novelo a que me submeto de maneira recorrente.

Talvez seja eu o fantasma que procura algo que não consegue mais achar. Visito um lugar que nem no passado mais se encontra, mas existe nessa realidade simultânea, nesse momento único de que é feito o universo de todas as eras. Sou levado pela minha providencial falta de orientação e de memória urbana. Esqueço o que vejo para me perder no aleph dos desterrados, onde há sempre uma rua inusitada, um corredor que leva a outras paragens, uma calçada caída diante de uma vitrine obscura. Sou o visitante sem rosto diante da identidade perdida de antigos e novos moradores. Sou o migrante com a percepção avariada que se defronta com o enigma da cidade que se recusa a desaparecer totalmente. Suo a camisa para chegar onde quero. Normalmente consigo. Mas basta ter de voltar para saber que estarei novamente perdido, à mercê de uma demência misteriosa.

Não posso mais me estender sobre isso, pois acabei me convencendo que nenhum segredo existe para ser revelado. Já me acostumei a me perder nesse labirinto. Já me incorporei nos elementos da paisagem que se desdobra. E não adianta ter a praça em frente e o terminal na fronteira do enigma. Quem parte do número um para chegar ao número dois fatalmente vai se comprometer com a infinidade de algarismos que podem ser colocados depois da vírgula.

Georg Kantor, criador (ou um dos criadores) da teoria dos conjuntos, que uso indevidamente aqui para ilustrar minha experiência, morreu pobre, esquecido, com alta dosagem de depressão. Eu não me incomodo mais em conviver com o mistério e nem pretendo achar uma solução. Isso talvez me salve, enquanto compartilho minha dúvida com os habitantes eventuais dessa região de sombras, de cheiros antigos e de encanto permanente. Escrevo para não perder o fio desse novelo, mas sei que, se usar a linha infinita para voltar à porta da entrada, fatalmente serei enredado novamente. Prefiro fazer o que preciso, tomar uma das travessas e rezar para chegar finalmente à praça.


RETORNO - 1. (*) Conto/crônica publicado(a) hoje, dia 7 de março de 2007, na seção Literário do Comunique-se. 2. Imagem de hoje: o limite do labirinto - à direita, a Praça XV, em Florianópolis; à esquerda, o início do mistério.

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