25 de março de 2007

RENATO POMPEU: UM PULO NO ABISMO



(Nota: Leia o que Renato Pompeu escreveu sobre esta resenha no espaço dos comentários e na seção Retorno, abaixo)


Nei Duclós


Renato Pompeu é um autor determinado e radical. Imagina o Brasil como a soma e a síntese do que a humanidade produziu e propõe uma literatura épica, que reflita a grandeza da trajetória da população que aqui aportou. Uma literatura longe das relações de compadrio, do que ele chama de ética do favor, fator de contaminação, segundo a análise de um dos seus inúmeros personagens, dos autores mais considerados da nação.


Seu romance-ensaio, O mundo como obra de arte criada pelo Brasil (Casa Amarela, 212 páginas, R$ 32,00) é uma carnavalização dos elementos dessa literatura possível, como se o Grupo Oficina, de José Celso Martinez, que intensificou a revolução modernista de Oswald de Andrade, saísse às ruas obedecendo a um samba-enredo futurista, tecido pelas oportunidades da internet e pela iminência do caos generalizado fundado pela desordem capitalista. Nesse desfile de real valor, a composição dos detalhes segue as minúcias de um pesquisador obsessivo, expondo todas as nossas qualidades e defeitos e fazendo o contraponto à censura imposta pelos donos do poder, que dão mau exemplo ao mundo ao desprezar o povo que os alimenta.

Por escrever de peito aberto, sem concessões inclusive ao que podemos entender como romance, com diálogos que são mais falas eruditas na boca de personagens populares, Renato chama para si a briga e a polêmica. Impossível não discordar em um ou todos os aspectos que vestem o processo definido por ele, de um país que, exatamente por estar em ruínas, tem condições de recriar-se. Sua proposta é fazer acontecer como nos antigos mitos fundadores fora do etnocentrismo judaico-cristão, mitos que ele descreve com a paciência didática de quem precisa se opor às religiões que vêem a Criação como algo a partir do nada. Podemos estar vivendo o momento criador não apenas de uma nação que serve de modelo ao mundo globalizado, diz ele, mas de um planeta inteiro que poderá fundar-se no equilíbrio social por meio de um governo mundial esclarecido.

É muita ambição para uma obra só, a não ser que Renato esteja nos colocando numa armadilha e faça suas investidas armado de sua ironia, fruto do preparo que suas infinitas horas de leitura lhe proporcionaram. Mesmo que isso seja verdade, não impede que fatalmente é a escassez de obras como esta que fizeram Renato Pompeu arriscar-se nesse pulo no abismo, não temendo cair em contradições e explorando todas as nuances da sociedade de classes brasileira. O ambiente onde ocorre a trama é uma comunidade overground (em oposição à mitologia underground), em que pontificam uma Baronesa (espécie de matrona protetora dos talentos, tal como ocorreu nos anos nascentes do modernismo) e todas as camadas de seus subalternos. Essa comunidade que retrata o país à beira de uma data magna (a virada do milênio) coloca os intelectuais e os artistas em geral sob o tacão da estrutura injusta da ordem política e econômica, mas acena para um convívio utópico de harmonia entre desiguais, tudo pontuado pela disponibilidade total dos sexos, gêneros e corpos.

O leitor, tão propenso a embarcar nas águas de um autor de grande talento, fica entretanto com a pulga atrás da orelha, desconfiando que tudo não passa de um passe de mágica urdido pela capacidade enciclopédica de juntar palavras e atirá-las no colo de uma trama aparentemente simples, para onde convergem toda espécie de leitura. Prefiro seguir o caminho dos que acreditam que ele esteja realmente defendendo essa proposta, fundada no que ele acredita ser uma singularidade da nossa civilização: a miscigenação. Ao colocar um peso enorme na mistura de raças, Renato promove uma espécie de colapso da sua teoria. Pois toda raça é produto da miscigenação. Inclusive o próprio Nietsche alertou que os alemães eram produto da mistura de raças não arianas. Achar que a miscigenação é determinante da nossa cultura é o mesmo que achar que as raças também têm o mesmo peso. Pois o que sai da mistura é uma raça nova, mestiça e não é disso que se trata.

Não deslumbramos o mundo por sermos mestiços. Nosso futebol e música são fruto de políticas públicas do Brasil Soberano. Não foi a malemolência, a flexibilidade, a abertura para todos os tipos de influências, mas sim a instauração do ensino musical e a organização dos esportes, que aproveitou a vivência lúdica da população. Foi na Era Vargas que despontamos para o mundo com o melhor da nossa música (de Villa Lobos a Tom Jobim) e do nosso futebol (do Diamante Negro a Pelé). Não foi porque somos mestiços, como quer Renato Pompeu em seu ensaio, ou pelo menos, nas falas de seus personagens. Erradicar do imaginário, da memória e da História do país o trabalho político de muitos anos de soberania nacional equivale a dizer que somos fruto da geração espontânea. Como revolucionário dialético, um homem de esquerda na melhor acepção do termo em que os processos comandam todas as frases, tendo elas sempre raízes, caules, folhas e frutos, Renato não deveria participar, mesmo sem querer, do enterro de uma experiência política que por várias vezes foi derrubada do poder, até que definitivamente foi expulsa com o golpe de 64.

Sua análise (na pena de um dos personagens) arrasadora da poesia brasileira, em que coloca, de Manuel Bandeira a João Cabral de Melo Neto, como pessoas, apesar de muito talentosas, envolvidas com o tráfico de influências e de troca de favores, é um desastre por não levar em consideração a obra produzida por esses grandes talentos. Não se pode dizer que todos eles estiveram voltados para o próprio umbigo, fazendo poemas épicos da trajetória pessoal, deixando de lado a saga brasileira de cinco séculos. É uma redução trágica, mesmo que possamos concordar com ele de que houve mesmo um relacionamento íntimo entre os pares. Mas não é isso que queremos, favores materiais à parte? Não é a comunhão espiritual com os contemporâneos que cultiva a literatura e a arte? Veja como estamos isolados, excluídos, não por não participarmos de favores e trocas mútuas de interesses, mas exatamente porque nos isolamos deliberadamente, sem conversarmos entre nós, nos deixando cada um num canto, como se fôssemos uma espécie de criaturas contaminadas.

Mas essa é uma leitura individual de uma obra que nos arremessa para uma infinidade de vetores. Ler Renato Pompeu, escritor raro pela coragem e o talento, é um exercício de cidadania. Não feche os olhos para esta obra. É obrigatória, porque venta onde há calmaria, porque acende o fogo quando há inverno, porque traz sombra no deserto, por nos convida a saltar sem rede de segurança. Leia Renato Pompeu, escritor do Brasil Soberano, que faz o inventário das ruínas e propõe uma costura de ourives, pautada pela erudição e a fúria criadora.


RETORNO - Todo grande talento é pautado pela grandeza. Renato Pompeu, jornalista e escritor que é um exemplo para todos nós, não foge à regra. Além do comentário postado aqui, ele me enviou o seguinte e-mail: "Caro Nei, fiquei muito contente com sua resenha. Eu me considero um democrata e, para mim, o democrata não é o que exige o direito de crítica, o que é prerrogativa do tirano, mas o que aceita sem maiores problemas ser criticado. Em segundo lugar, eu gosto de ser criticado como critico os outros - impiedosamente, mas respeitosamente. Foi isso exatamente o que você fez. Abraços do Renato. "

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