20 de março de 2007

GLAUBER E O DOCUMENTÁRIO “DI”


Graças a uma nota de Elio Gaspari no domingo na Folha, consegui enfim ver o documentário Di, de Glauber Rocha, postado num blog. Décadas proibida pela família de Di Cavalcanti, que se sentiu ofendida pelo tratamento dado aos funerais pelo nosso cineasta maior, a pequena peça audiovisual de vinte minutos, realizada em 1976, é uma síntese não apenas da obra de Glauber, mas uma aula da vanguarda legada pelo modernismo e intensificada nos anos 60 e 70 do século vinte.

Falei mal das vanguardas esses dias, mas é apenas má vontade com as contrafações, imitações e cristalizações dos movimentos libertários na arte. Costumo dizer que sem tradição (o que vem antes de nós) não há ruptura e se você trabalhar apenas a ruptura (fazendo dela tradição) então voltamos à estaca zero. Glauber mostra um caminho diferente. Ele presta homenagem ao trabalho de transgressão de seus antecessores (que são suas raízes) e vai em frente. Sua vanguarda, portanto, é legítima e serve antes como um alerta: se não tratarmos nossos contemporâneos (e os que chegaram primeiro por aqui) à altura, teremos que tentar fazer justiça depois que os outros se foram.

O narrador, o próprio Glauber, lembra que falou poucas vezes com Di e chegou até a deixar para lá uma chance de filmá-lo. No velório e no enterro, ele faz um travelling do trabalho primoroso do pintor, inserindo-o entre os grandes criadores da época, uma espécie de Picasso brasileiro. Lê, ao longo de inúmeras montagens, que intercalam cenas, dos que compareceram à cerimônia, com os temas da arte de Di, um longo poema de Vinícius de Moraes sobre a vida de Di e seus necessários excessos. Tudo pontuado por uma trilha musical que vai de marchinhas famosas a ruídos variados. Glauber faz o contraponto entre a transgressão do artista e o tradicional comportamento cerimonioso de familiares, amigos e celebridades que compareceram ao enterro.

Isso deixou a família furiosa, pois parece falta de respeito. Mas foi a maneira de Glauber homenagear não apenas o pintor, mas todo o esforço de vanguarda no Brasil, desde o modernismo. Glauber não suporta a indiferença e o papel que cabe ao Brasil no concerto das nações. Usa a arte brasileira para transfigurar nossa importância, para gritar que estávamos sendo sucateados (o que afinal se cumpriu) e para berrar que devemos prestar atenção no que fazemos aqui e entender a importância da contribuição brasileira ao trabalho de transformação artística em todo o mundo.

Há um paradoxo importante no documentário. Pode ser entendido como datado, excessivamente preso ao tempo em que foi feito, com todos os elementos estéticos e filosóficos de Glauber, que pertencem àquela época de turbulências, que foi enfim sepultada. Ao mesmo tempo, e talvez por isso mesmo, é excessivamente atual, pois nos puxa do fundo do poço onde nos metemos para tentar fazer alguma coisa, ou pelo menos encarnar essa fúria criativa que tanto mudou nossas vidas. Hoje, nem lembramos o quanto devemos ao que foi feito naquele tempo, a não ser por meio do filtro dos resgates mal resolvidos, a cargo dos medíocres de sempre.

Se não revisitarmos Glauber, corremos o risco de voltar ao pré-modernismo. As novas gerações, zeradas pelo nascimento, acabam se impregnando da arte tradicional que tanto bocejo provou nesta terra imensa. Ou então enxergando as vanguardas como um excentricidade ou pior, como algo a ser idolatrado como mito inalcançável. Ao contrário de tudo isso, Glauber é um corredor de revezamento que nos passa o bastão e grita para que cheguemos ao objetivo. E qual é essa meta? O de não deixarmos jamais deixar a peteca cair, entender a especificidade de nossas culturas aqui abraçadas de todo o jeito e seguir adiante sempre, com o olhar rútilo da lucidez sem freios.

Nada a ver com o olhar isento de emoção e cheio dos vícios dos decifradores de cadáveres, tão ao gosto da idiotias geral que tomou conta da nação. É caminhar ao lado do morto lembrando sem parar o que ele significou para a nossa cultura, é amar fora dos laços familiares ou sociais, é mergulhar no que a arte propõe de mais radical e generoso. Vejam Di, de Glauber. Vamos assumir essa obra que nos tira do imobilismo e nos sustenta para a grande guerra que enfim explodiu.


RETORNO - Imagem de hoje: Glauber (à direita) dirige o documentário Di.

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