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29 de maio de 2006
O IMPERIALISMO FIEL
Vejo tardiamente grandes filmes e fico invocado. Um deles é O Jardineiro Fiel, projeto multimilionário baseado num thriller de John Le Carré, que já tinha produtor e roteirista quando Fernando Meirelles foi convidado a dirigir. Fiquei impressionado pelo making off, quando Le Carré fala que Meirelles trouxe a visão da cozinha, do terceiro mundo, para a história. Colocaram um dos nossos melhores cineastas lavando pratos. Meirelles diz que fez a história sob o ponto de vista do Quênia, o que não é verdade, pois a megaprodução deixa bem explícita quem são os protagonistas (os branquelos em meio à massa negra) e quem são os coadjuvantes (a massa negra). Outra coisa que me invocou foi como a grave denúncia contra a indústria farmacêutica é produzida com bufunfa pesada internacional, é tratada como entertainement e tudo fica por isso mesmo.
Descobri, sem ser convidado à reflexão (já que reflexão não precisa de convite) que o filme faz parte do esforço do Primeiro Mundo em abraçar o políticamente correto (por uma questão de marketing, de conquista da opinião pública em pleno vendaval do Iraque), colocando no lixo os diplomados ultrapassados e as indústrias mal sucedidas, as que não possuem cacife para concorrer com as grandes marcas mundiais do setor. Tudo isso não tira o mérito do filme, que é impressionante nas imagens, no ritmo, nas interpretações e na viagem que faz África adentro, com um Ralph Fiennes que se desveste da pompa e se encharca de areia e luz. Essa desconstrução tem um motivo: Rachel Weisz, a combatente que vira pelo avesso a vida do bem comportado diplomata subalterno (ficar envolvido com o jardim confirma sua preferência de classe - ele se identifica com os trabalhadores braçais, por mais charme que exista na dedicação à terra e às plantas).
QUALIDADES - Meirelles é do ramo. O uso que faz da webcan, da internet, dos arquivos digitais para compor sua narrativa é de uma competência que emociona. Seu travelling na paisagem do Quênia, o encontro mítico entre o falso jornalista e o médico enterrado no ermo (um resgate do famoso encontro entre Stanley e Livingstone), o partido que toma a favor das crianças (como aconteceu com Cidade de Deus) são qualidades do nosso cineasta maior que o cinema americano valoriza até o limite, pois sabem que um profissional desses não se encontra em qualquer canto do mundo. Ele destaca personagens negros, como o homossexual parceiro da esposa do diplomata, ou a mulher que morre devido aos testes de um remédio venenoso, ou mesmo a menina que decide sair do avião para que os outros se salvem, que nos tocam pela grandeza em meio à miséria absoluta. Não é uma postura falsa, comercial e talvez seja esse um dos motivos para trazer Meirelles ao primeiro nível do cinema mundial: o de que ele não trairia seus princípios ao filmar uma história de corrupção que denuncia a pata pesada do imperialismo. Mas como um camaleão, o poder das grandes potências usa de todos os truques para continuar em frente. Usa certamente este filme, mas não o desmoraliza, por mais contraditório que isso seja.
DOCILIDADE - É certo que a arte e a produção intelectual sérias no Primeiro Mundo não ficam a reboque diretamente ao Império. Existem gargalos fechados nesses vasos comunicantes, apesar do avanço que a direita promoveu no cinema, principalmente depois dos atentados de 11 de setembro. Algo sobrevive e muita coisa pode sair dessa abertura. Mas precisamos ficar atentos às armadilhas, sem querer dar uma de vestal ou de correção acima de qualquer suspeita. É direito nosso duvidar das boas intenções, não dos profissionais e artistas envolvidos, mas do sistema que torna viável o filme. Notem que o alto comissariado britânico no Quênia apoiou e o governo local também deu força, já que as denúncias se referiam ao governo anterior. Mas tudo isso pode ser encarado como uma forma de limpar a sujeira acumulada pelo imperialismo e torná-lo mais dócil, aparentemente, para a opinião pública mundial (já que existem diplomatas honestos e a nova relação internacional entre as nações pode incorporar as denúncias contra os abusos).
UAU! - Fico invocado também que esse tipo de debate não tenha vindo à tona durante o lançamento do filme. Seria irresponsabilidade dizer que isso se deve ao envolvimento dos jornalistas da área com a campanha de marketing do filme. Acredito que não existe tráfico de influência ou corrupção. Mas não há dúvida que o clima de sedução do dinheiro investido na publicidade do filme, que convidou os críticos para alguns eventos, deixa pouca margem para uma crítica mais contundente e profunda. Façam um teste: na próxima megaprodução, me convidem. Vamos ver se eu caio de pau no lançamento ou me desmancho em análises elogiosas. Uau, Nova York, lá vou eu! Agora, sem brincadeira: como o filme em questão, a crítica dos grandes veículos também possuem inúmeras qualidades e geralmente nos informam de maneira correta, pois existem excelentes profissionais cuidando do assunto. Mas a conexão do sistema de publicidade com a redação lança dúvidas sobre alguns aspectos do resultado.
RETORNO - Imagem de de hoje: a fuga de Stanley/Livingstone do massacre dos cavaleiros do deserto, cena antológica do impressionante Fernando Meirelles.
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