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14 de maio de 2006
NAVE DE OUTONO
Sempre espero que uma nave prateada surja por trás do morro e raspe o azul do céu. Depois me dou conta que a nuvem branca é a nave que aguardo. Há o mistério de ser vista assim, majestosa como escultura a se desdobrar lentamente, sendo acompanhada por fiapos de algodão, que dão o tom deste outono claro e frio. O mistério está sobre nossas cabeças e olhamos maio como um Deus em plena criação. Esta parte do território tem a grandeza das estações, ainda intactas, que mostram sua doçura quando não há vento nem chuva. O tempo bom aclara o corpo e mantém a esperança. Quando olhamos a terra de frente, sob o manto do silêncio, nos descolamos de todas as intervenções. O que chamam natureza é apenas a integridade do que somos. Por isso nos afastam dela, para que possamos ser manipulados num jogo mortal. Na rede estendida na varanda, sigo o dia em sua plenitude e avisto, quando as horas passam, no crepúsculo, o sol a pintar de roxo o horizonte, enquanto a abóboda que chama estrelas ainda invisíveis parece uma superfície lixada, areada, quase fosca. Aos poucos a lua cheia chega para iluminar a noite e noto que a felicidade é estar envolto no cobertor salpicado de luzes vivas, que se anuncia pelo som dos últimos pássaros em direção ao ninho.
PASSO - Não, meu amigo, não fazemos parte deste mundo. Basta cruzarmos o portal para ficarmos sós. Para onde foram aquelas notícias ruins, as sirenes violentas, o matraquear agônico? Somos de outra têmpera, nós que nos aproximamos tanto do fosso feito para nos engolir. Não, meu irmão, não viemos da mesma infância. Somos opostos, embora a nação nos costure. Basta uma pequena distração e eis que ficamos longe por mil anos. Não minha mãe, não te conheci e de ti guardo minha presença, meu passo pesado tão diverso do teu. Aquele teu passo miúdo, longilíneo, conduzido por um rosto pensativo, um vestido que descia até o sapato, o cabelo arrumado para o trabalho. Sim, minha mãe, sou o que ficou de ti e jamais te vi como deveria. Porque me contentei em ser sombra do mundo que teceste ao redor, como tua paciência de vime, tua alegoria de sonho, teu pragmatismo róseo, teu humor que afastava a tempestade. Não, companheiros de estrada, não temos nada em comum. Basta um fim de semana para nos apartar do que fingimos ser durante a época que nos deram para viver. E não adianta escrever sobre o que não entendemos. Nada nos salvará do naufrágio que é a voragem do destino, a nos acenar de cima de uma nuvem tardia, a que não soube se recolher junto com o sol.
MAPA - Para que serve a poesia se viver ficou impossível? Para que serve a certeza, se a presença mais sólida se transmuta em algo etéreo, e vira lembrança com a qual não sabemos lidar? As palavras estão soltas neste mundo sem lei. Jamais saberemos do que estamos realmente falando. E quando partirmos, quem decifrará a passagem terrena de criaturas desatentas como nós? Agora faça a mala, e consulte o mapa. Algo poderá acontecer que nos tire deste limbo. Talvez uma notícia oculta, como vésper, a estrela guia para onde navegaremos nossa ilusão. Palmilho a falta que nos faz o abraço, o entendimento mínimo e prevejo nova dispersão. Por um momento acreditamos estar próximos, mas nos vemos novamente no barco em alto mar, a olhar o céu estendido como um presságio. Quando anoitece em nossa nau à deriva, os fantasmas nos visitam. Eles sussurram na correnteza uma canção do exílio. Cantamos juntos, nós que batizamos este barco com um nome qualquer e dependemos da sorte para que alguém nos recolha.
LEME - Mas basta uma lufada mais forte para mantermos o prumo. Apertamos o leme e vemos a imagem da nossa vida deslocada do mundo cada vez mais feroz. Sim, minha mãe, ainda navego. Teu filho procura a aurora.
RETORNO - A imagem desta edição é mais uma do artista Helcio Toth.
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