Graças a daniduc, que pesquisou nos meus arquivos em Sampa e resgatou o único exemplar que dispomos de Tombam os Primeiros Homens nos Trigais (mimeografado, 1969), pude enviar para o grande poeta oculto seus poemas da juventude madura, que ele tinha perdido em décadas de clandestinidade da vida literária. Hoje reproduzo um dos mais belos espécimes desse baú ainda vivo, que nos fala de uma época dura, quando a revolução rebentou a rua da nossa geração. Uma homenagem ao pai que ele compreendia pouco na vida diária, mas conhecia como ninguém na hora de escrever um poema.
"MEU PAI
Marco Celso Viola
com suas mãos morenas
cobriu meu corpo num dia de inverno
olhei-o como se olha um estranho
por que me cobras, senhor?
e ele sem me ouvir
doou-me o pão com que cresci
mastigou ferro com seus dentes gastos, estragados
para me fazer homem
nunca conheci palavras de ternura para
dizer-lhe
comecei meus primeiros passos fazendo inimigos
ele com sua voz calma me acautelava
com sua tranqüilidade de velhas batalhas
que nada!
depois de ouvir palavras mansas
eu virava nossa miserável mesa de jantar
Quando fugia levava tudo que tinha nas costas
deixando milhares de coisas espalhadas em nosso assoalho
de madeira
e ele me olhava com seus olhos grandes e negros
murmurando qualquer coisa que eu não escutava."
Não resisto e também publico um clássico da nossa literatura, o poema em que Marco Celso Viola transforma-se em poeta maior:
"MEUS MOTIVOS
Marco Celso Viola
Estou cansado
hoje especialmente estou cansado
as paredes desta casa como fortaleza
comprimem meu corpo
hoje eu parei
como para um trem numa estação
e recolho mais passageiros
preciso de mais passageiros
tenho andado de fábula em fábula
fazendo de minhas canções românticas o doce parto de nossas raízes
e com isso fiz a minha mulher amada
escrever ausência em todos os cadernos que possuía em sua escrivaninha
e deixei em todos aqueles que me percorreram um vazio
do estádio depois dos jogos
Quando hoje eu devia dar-lhes palavras alegres
não posso
os pastores tomaram seu rebanho de medo
em cima de meu corpo
e tudo isso me dói
como esta falsa ternura que sou obrigado a aceitar
Aqui quando vossos olhos
me vem por inteiro
assim como sou
só lhes posso dizer que creio na primavera a curto prazo
aprendi novas mágicas
que lhes gostaria de ensinar
se não posso agora deixarei em vossos lábios o desejo ávido de meu coração repartido
Eu lhes devo tudo amigos
respeito ternura e raiva
por isso procuro ser sincero o máximo possível
eu cidadão sem nome
que na primeira pessoa do plural
não constrói absolutamente nada
eu cidadão
das cidades distantes
como poderia ser um menino bem educado
se quebrei meu escudo muito cedo
nas brigas terríveis
contra espadas de madeira e aço
se minha escola resumiu-se
na geografia do cais
e do mercado
dos brinquedos roubados
e as verdades abertas nos livros mentirosos que não temi
em ler
joguei futebol com os foguistas e maquinistas
no inverno andei enrolado com meus longos capotes azuis
manchados de fumaça
e agora frente a frente
trago os olhos carregados de horas
e masco a cada minuto a rosa dos ventos
gente! É necessário coragem para crescerem os frutos
vejam que coisa impressionante as árvores florirem depois
de mortas
se hoje estou vestido com a amarga roupa dos fugitivos
espero apenas que prossigam seus passos sem ruído.
Hoje é diferente
eu estou todo verdadeiro
hoje a simplicidade daqueles que defendo
aflora em mim como um país
novo
Gostaria de te dizer algumas palavras amada
se estivesses agora perto de mim
Não há tristeza nem amargura a me rodear
existe uma janela a minha frente que abre a rua
e os amigos como um bando de elefantes
borboletam a minha volta
sinto-me como um pintor de edifícios
que veste um casaco colorido onde outras mãos já percorreram
com estes óculos de simplicidade
que coloquei entre as orelhas
tudo me é possível inclusive ler fotonovelas
Ando-me em outras anatomias
em outras ternuras e alegrias
Alguns fumam cigarros pelas ruas
outros são assassinados
outros se preocupam com números
Eu particularmente
me detenho aqui
com isto que possuo
me dá vontade de abrir a boca e não fechá-la
mais de espanto
Com estes dezenove anos de loucura que tenho no corpo
neste piano desafinado
que carrego no peito
e com ele teimo em dar concertos a cada minuto
desculpem-me se ainda não estou tocando de acordo com a
orquestra
o negócio é lento
companheiro
esta revolução
precisa de armas
estou afinando
minhas cordas aos poucos
se minha extensão territorial
não atinge o necessário
eu me encarrego de desbravá-la
com machado em punho
todas as manhãs
marcharei para o trabalho podando minhas árvores
amassando meu pão
com a mesma felicidade
que me possui agora
nestas palavras
entrando papel adentro
com a nossa energia
que aprendi
desde o início
Amada, companheiros
aqui em mim
é tudo traduzível
os artesãos que possuo
no crânio
estão nesse momento
tecendo
a mais bela roupa
deste continente."
RETORNO - 1. Urariano Mota enfrenta os obituários da imprensa sobre um grande brasileiro em seu texto no La Insignia, Arraes, Urgente, e explica porque os jornalistas erraram a mira. 2. Minha crônica, Visita ao planeta terra, foi publicada neste domingo no caderno Donna, do Diário Catarinense, esplendidamente ilustrada por Samuel Casal e editada por Dorva Rezende.
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