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5 de agosto de 2005
A CURVA DE AGOSTO
Não se brinca com agosto. É aquela curva do rio em que perdemos a noção do que já viajamos e nem conseguimos vislumbrar o que virá pela frente (uma corredeira? um catamarã em alta velocidade?). No dia cinco de agosto, as tropas paraguaias tomaram Uruguaiana e de lá só saíram com a presença do Imperador Dom Pedro II. Todos os que contam se foram em agosto, esse prelúdio de um futuro que é puro enigma, esse descenso do passado, montanha transformada em vale. Na política, somos governados por um personagem criado por políticos investidos em historiadores. Lula fala que Getulio Vargas, ao criar a Petrobrás, insurgiu-se contra as elites e que ele hoje faz o mesmo. O grande estadista do Brasil soberano é usado conforme as conveniências dos pequenos tiranos que nos governam. Vargas foi-se em agosto, quando começaram a jogá-lo fora do país que ele inventou, por seus méritos de coragem e inteligência, e de estratégias sintonizadas com as necessidades do povo que sempre o apoiou. Leitor de Émile Zola, ele sabia o que significava uma revolução, e como liderou a de 1930, passou a vida para consolidar uma realidade fundada na harmonia social e na independência política e econômica da nação a qual serviu como ninguém.
ROÇA - Vargas não era contra as elites nem contra o povo. Queria uma elite verdadeiramente moderna, industrial, que abrisse mão dos hábitos roceiros e soubesse conviver com uma estrutura sindicalista atuante. Precisou intervir no sindicalismo para que este sobrevivesse. Como notou Brizola, é por isso que Lula encontrou intactos o instrumentos da era Vargas que viabilizaram sua ascensão ao poder. Lula é presidente não por ser pobre e filho de analfabetos, ou por ter sido corajoso por peitar a ditadura. É presidente porque teve formação no Senai, criado nos anos 40 em plena era Vargas, instituição de primeira linha que até hoje é um exemplo educacional, junto com a rede do ensino do Sesi. É presidente porque foi líder do sindicato que Vargas garantiu com a força da polícia para que os empresários entendessem que a representação dos trabalhadores precisava existir e sobreviver para manter o grande projeto de harmonia entre classes sociais. Enquanto a esquerda petroglífica se deslumbrava com arroubos revolucionários, Vargas tinha lido Zola e o relato tremendo do grande escritor sobre a anarquia que tomou Paris em 1848, quando malfeitores davam as cartas em todas as esquinas, cobrando pedágio da população desarmada . Sabia que aquilo não era bom para o país. Por isso implantou um poderoso parque industrial, que tomou fôlego com o fruto de longa e penosa negociação com os americanos, ao trocar o apoio aos Aliados pela siderúrgica de Volta Redonda. Vargas enviou tropas para combater o nazismo, mas foi acusado de fascista e anti-semita. Viabilizou uma vida digna aos trabalhadores (perguntem a qualquer ancião, qualquer um), com garantia de emprego justo e justa remuneração. Foi acusado de populista e paternal. Lutou para chegar ao poder, mas foi acusado de ter feito arreglo de elites. Arreglo foi o de 1985, quando José Sarney, o ex-presidente do PDS, o partido da ditadura, inaugurou a falsa democracia que existe até hoje.
PTBS - Hoje tudo se desmascara e Vargas mantém-se firme na sua posição de o maior estadista do Brasil. Seu legado é o único a ser disputado por mais de um partido (e caberia mais um, o Partido Trabalhista do Brasil Soberano, o PTBS, que deveria ser criado). Toda sua obra frutifica. Na cultura, nem tem graça: é tamanha a sua contribuição à formação de gerações de escritores, pintores, professores, cientistas, que nunca saberemos o limites de tantos acertos. Na política ajudou a criar partidos legítimos, como PTB, popular, e o PSD, centrista, além de ter, sob o seu governo, implantado o voto da mulher, entre outras inúmeras providências. Seu grande enigma é o Estado Novo, período de 1937 a 1945 (época em que foram criadas as leis trabalhistas, a única garantia do trabalhador). Esse período foi transformado em horror absoluto da História recente do Brasil. Foi uma época de guerras no mundo, de tentativas de golpes de estado dentro do país. Seu braço policial, Filinto Müller (que mais tarde serviu a ditadura de 64), tinha contas pessoais a acertar com os dissidentes do governo e usou toda a truculência possível, assim como o guarda-costas Gregório Fortunato usou o cargo de segurança pessoal da presidência para fazer a besteira do atentado a Lacerda (toc,toc,toc). Mas Getulio não quis ser blindado em nada. Arrostou as responsabilidades e despediu-se com um tiro. No lugar do sangue do povo, preferiu seu próprio sangue. Ninguém teria a mesma coragem e o mesmo desprendimento. Quando vemos tanta gente grudada no osso, invocamos o estadista que morreu com o mesmo patrimônio com que começou a vida. Depois de eleito por esmagadora vitória nas eleições de 1950, pedia crédito para seu alfaiate para fazer seus ternos, já que o exílio de cinco anos tinha aumentado sua silhueta.
LUTO - Faz parte da irresponsabilidade política do governo atual tentar invocar Vargas, que nunca foi comida para o apetite de desqualificados. Se ainda dispomos de algo hoje, devemos dar graças a Getulio Vargas. Faz parte desse resgate a crítica a seus erros, mas isso jamais deve ser transformado em tabula rasa do período em que nos governou. Nasci naquela época suprema, no governo Dutra, presidente eleito com o apoio de Getulio. Minha infância foi sob Vargas presidente eleito pelo voto direto. Tínhamos democracia, tínhamos debate. Em certa manhã muito estranha, me acordaram com um sussurro medonho: o Getulio se matou, o Getulio se matou. Levantei e olhei pela janela do quarto. O povo se retirava do trabalho aos prantos. Tínhamos perdido nossa maior riqueza. Talvez nunca vamos recuperá-la, já que entregaram o país de todas as formas e maneiras. Minha vingança é resgatar essas coisas, para que saibam que o país nem sempre foi como está.
MEMÓRIA - Houve um tempo, interrompido por agosto, que o país tinha orgulho de si. E isso estava no modo de as pessoas andar, no jeito de falar, nos gestos, na cabeça e no coração. Tínhamos tudo, tínhamos Getulio Vargas. O presidente inesquecível do Brasil Soberano.
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