21 de agosto de 2005

AMÉRICA: JÁ VIMOS ISSO ANTES




Estou falando da novela global América, não da situação política. Novela? Para escapar dela pague 400 paus de luvas para a Sky (já que a Net não chega onde moro) e mais quase cem mensais e aí terás direito a muitos canais, todos eles com bastante mídia interna, aquele tipo de interrupção sacana que nos lembra, a todo momento, que o próximo programa você não pode perder. Porcaria por porcaria, me submeto à TV aberta, que ainda é de graça. As outras opções são: o Show da Fé e o Gilberto Barros da Band (por que tantas pessoas se submetem a jogos bananas entre homens de um lado e mulheres do outro?) e os horrores dos recordes na Rede Record (vejam, vou arrancar meu nariz, colocar na boca, mastigar e engolir, isso não é espetacular?). Depois do noticiário, faço um passeio pela mente medíocre da autora de América, Gloria Perez, que comete uma série de barbaridades dramatúrgicas.

NINGUÉM PRESTA - Todo capítulo é uma seqüência de cenas iguais às do capítulo anterior (não há um desdobramento do enredo, há uma clonagem permanente, como se a autora tivesse viciado no selecione e copie, o famoso control c/ control v). São elas: as putinhas que se rebolam, as peruas que exploram os maridos, os machões oportunistas, os bailes em todos os cenários (a gafieira no Rio, a dança de salão em Boiadeiros, as dançarinas migrantes de Miami). A cada período (uma semana, 15 dias) outras cenas entram para se repetir. Há cenas cíclicas, aquelas que a toda hora são obrigatórias: todos os peões tiram o chapéu e rezam para Nossa Senhora Aparecida, a sogra que interfere na vida conjugal do filho, a cantriz mulata que chantageia o português dono da gafieira, o casal maduro que troca cornos entre si, os filhos ou filhas sem nenhum respeito aos pais. Ninguém presta em América: a mulher carola no fundo é uma putana, o boa pinta é assassino, a dona de casa pobre é trouxa, o galã é manipulado pelas mulheres, as fêmeas estão sempre no cio, prontas para o sexo disponível e interesseiro e assim por diante. Todo esse festival de redundância é acompanhado pelo vício que existe na Globo de chupar cenas do cinema americano, como aconteceu ontem.

CHUPAGEM - É famosa a situação em que o marido nega o flagrante de adultério, confundindo assim a esposa acusadora que tinha visto tudo. Qual mulher, onde? diz o marido já de pijama sentado no sofá depois de ter sido interrompido em atividade na cama com outra. A esposa insiste, grita, mas acaba cedendo. Na novela, a mulher se faz de tonta (finge que entra na dissimulação do marido) para arrancar grana da situação. Acompanhei de perto uma novela da Globo que era quase inteiramente chupada de Matrimônio à italiana, de Vittorio de Sica. O autor confessava sua admiração pelo grande diretor italiano, mas, neste caso, admiração é uma coisa, honestidade intelectual é outra. Em todos os horários, alguém usa a boutade de Mae West, quando sou péssima fico melhor ainda, ou algo parecido. Os noveleiros globais adoram isso, como se ninguém soubesse, como se tivessem descoberto a pólvora. E não adianta invocar o álibi da citação, pois jamais o crédito aparece. Outra chupada monumental em América foi o fingimento de Ed e Sol, que precisavam saber de tudo um do outro para driblar a fiscalização dos migrantes nos Estados Unidos. Todos viram esse filme, Green Card, de Peter Weir: Gérard Depardieu e Andie McDowell casam por conveniência. Numa das cenas, Gérard pergunta pela menstruação da parceira, causando certo constrangimento. Isso foi completamente copiado em América.

TELESACANAGEM - A difusão maciça e longeva da falta de escrúpulos dos brasileiros é uma das influências mais nocivas das novelas. Há incentivo para que a vilania vire heroísmo, para que as pessoas usem o sexo para proveito financeiro, entre outras ações sacanas. Esse esquema de corrupção em massa é para submeter a população à tirania que nos governa, para transformar todo mundo em consumidor passivo dos produtos culturais fora de qualquer intenção artística verdadeira. O pior é que vem acompanhado de pregação politicamente correta, que é o merchandising da moralidade rasteira e de direita. O que quer dizer tanta catequese? Que a ditadura, o arrocho financeiro, a miséria e a exclusão são exclusivamente culpa nossa, e não dos governantes e das elites em geral, especialmente as que detém os meios de comunicação. Depende, portanto, de nós, para que a situação mude, ou seja, nós somos culpados por tudo e se as coisas não vão bem é porque você, caro telespectador, não passa de um safado que vive acomodado em seu sofá. Seja bonzinho e telefone para encher as burras dos gestores da campanha politicamente correta. Eles sabem o que fazer com o seu dinheiro.

RETORNO - 1. O uso da palavra "zero" chegou ao paroxismo e perdeu o sentido. Segundo a Folha, o secretário de Transportes e Terminais de Florionópolis, Norberto Stroich, disse que restaurar o Mercado Público incendiado na sexta-feira é "prioridade zero". Ou seja, nenhuma prioridade. 2. Na mesma edição da Folha de sábado, a matéria de capa do caderno Mundo sobre os hispânicos nos Estados Unidos diz que os grupos minoritários "perfazem 50,2% da população do Texas". Diz a reportagem, traduzida, de Michael Forsythe, da Bloomberg: "as minorias são mais numerosas". Para anarquizar com a matemática e a lógica é que se traduz reportagens estrangeiras? E o pior, se publica! Enquanto isso, muito repórter de primeiro time mata cachorro a grito aqui no Brasil. 3. Continua a campanha de atribuir o pior de Lula ao Getúlio Vargas. Agora foi a vez de Gesner de Oliveira, na mesma Folha, fazer comparações entre o grande estadista e a contrafação que ocupa hoje o Palácio. 4. Virou vício: numa reportagem sobre o 24 de agosto, que ainda não chegou, um jornal informa que Getulio implantou a ditadura do Estado Novo de 1930 a 1945. É preciso ler um pouco de História. De 1930 a 1933, foi o Governo Provisório: vastas manifestações de rua, eleições diretas (com o voto da mulher pela primeira vez no Brasil), criação de associações políticas. De 1934 a 1937, governo eleito pela Assembléia Constituinte, com liberdade total. De 1937 a 1945, aí sim o Estado Novo. E de 1950 a 1954, governo eleito livremente pelo povo.

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