15 de setembro de 2004

HISTÓRIAS DE ANIVERSÁRIO


Implico com os aniversários, especialmente os da chamada firma, e nisso a série Seinfeld já se manifestou, num episódio em que Elaine vicia no açúcar das 16 horas, quando se comemorava o natalício de alguém no escritório (ainda chamam o ambiente de trabalho de escritório?). Acho a data íntima demais para ficar submetida a pic-pics e rátimbuns de pessoas desconhecidas. Hoje mesmo é aniversário da minha mãe, que nasceu a 15 de setembro de 1916. Foi-se cedo demais em agosto de 1979. É uma data que jamais poderá ser lembrada com a musiquinha mentirosa americana do happy birthay (que toda a vez que eu ouço, me dá urticária).

REBENTOS - Sempre que falo de meus antepassados, tem alguém da família que implica, dizendo não ser assim (o famoso e clássico não é bem por aí). Mas vou arriscar. Rosa nasceu numa família que vinha, por lado de pai, de proprietários de terra, dos Carvalho daquelas plagas, descendentes de um patriarca militar, de nome Francisco, que no século 19 se instalou com a família em ampla propriedade. O grande número de filhos, nascidos de rebentos com a indiada local (naquele tempo existiam índios na região, que foram totalmente aniquilados ou absorvidas pelos cruzamentos) acabaram subdividindo as terras. O pai da minha mãe, que tinha uma pequena fazenda, morreu cedo, em circunstâncias que desconheço completamente. Por parte de mãe, Rosa descendia de italianos, dos Molinari, que tinham vistosa farmácia no centro. Não conheci meus avós. Apenas um retrato de Elvira Molinari, de perfil, vestida de luto, em moldura oval, como era moda. Minha mãe tinha três irmãs e um irmão. Contava que na revolução de 1924, quando era muito pequena e a cidade foi sitiada, a palavra de ordem na família era: todos para baixo da cama! Depois dizem que não houve guerra no Brasil, mas isso é outra História. Não quero aqui fazer genealogia, que nunca foi meu ramo, mas apenas uma pequena homenagem. Rosa tinha maravilhosa caligrafia. Até hoje guardo cartas dela, na minha casa em Sampa, das quais publiquei alguns trechos no site. Estudiosa e inteligente, foi para Porto Alegre e de lá voltou com diploma de professora, profissão que abraçou ainda muito mocinha. Mais tarde, fez concurso público para o Centro de Saúde, de onde só saiu aposentada. Guardava por 24 horas todo o seu salário no guarda-roupa e só começava a gastar depois dessa quarentena. Essa simpatia servia, penso eu, para que pudesse pensar direito no que ia aplicar o curto e escasso dinheiro. Mas vai entender seus rituais?

CALIBRE - Mãe de sete filhos, com inúmeros compromissos, trabalhando diariamente no seu emprego público, Rosa um dia cometeu a gafe de esquecer meu aniversário, mas no final do dia se recompôs me presenteando com inesquecível abraço e um revólver que pelo tamanho deveria equivaler a um calibre 45. Com essa minha magnum matei dúzias de inimigos imaginários e saí da infância completamente pacificado pela representação que me permitiram dos conflitos na infância. Hoje a demagogia manda sucatear armas de plástico, enquanto grossa dinheirama rola no tráfico pesado de armas, que vai totalmente para a mão de bandidos bem armados, a maioria crianças que brincam de verdade de matar. Mudaram os tempos: hoje os demagogos estão no poder. Naquela época existia infância, nós puxávamos nosso revólver de mocinho e todo mundo ria. Hoje, todos choram. Mas é politicamente correto, não é mesmo? Sobra lição de moral para distribuir. E ai de você se criticar alguém. Jogam-se contra teu pescoço como feras cheias de razão. Minha mãe debochava da mediocridade. Ria sem parar da idiotice do país. Emocionava-se com seus eventos mais importantes. Gostava de ler Jorge Amado e Érico Veríssimo. Adorava Chico Buarque e Roberto Carlos.

SONHO - Dificilmente sonho com ela. Esses tempos, ela me apareceu enquanto eu dormia, com seu rosto sóbrio, sério, triste, grandioso. Levantei com sua presença poderosa. Um dia eu também esqueci seu aniversário, por pura distração. Eu já morava em Porto Alegre, estava taludo e passava alguns dias em casa. Ela sentou-se no sofá com a mão no rosto e chorou por dentro. O filho já tinha ido embora. Perdia os rebentos de sua numerosa prole, que migravam para longe dela. Antes de completar 63 anos, despediu-se de todos, um por um. Depois que se foi para sempre, minha irmã Védora veio me repassar um dinheiro. Dona Rosinha sabia que eu estava duro e me deixou o suficiente para a viagem de volta a São Paulo. Haverá um dia alguém como Rosa Molinari Carvalho Duclós? Duvido.

RETORNO - 1. Tomzé deu uma aula de vanguarda. Ensinou como a música popular pode desencadear um processo criativo sofisticado e como, dialeticamente, soube enxergar-se a tempo para mudar e transformar-se num criador de verdade. Enjôo Soares contribuiu com a entrevista constrangendo Tomzé ao notar uma diferença sutil entre os dois pés de tênis que o artista usava. Os tênis eram parte integrante da aula de Tomzé. Aquele serviçal, Bira, que se comporta como serviçal e é pago para rir no programa, ficou tirando um toco do professor de vanguarda, para reiterar a grosseria do patrão. A mediocridade está sempre atenta.

2. Dizem que o Brasil é moda e considerado o país mais amado do mundo, segundo versão oficial. A China não precisa ser amada, diziam os chineses. Basta ser respeitada. Os estrangeiros não precisam amar o Brasil. Nós damos conta desse recado. Desconfio que esse amor feérico pelo país-fêmea tem a ver com a nossa total falta de proteção. Um dia levaram as riquezas naturais (continuam levando). Mas agora eles extraem é o suor da população, via juros da dívida externa. Não vamos nos enganar: o Brasil vai crescer até chegar novembro, fim das eleições. Aí a situação muda.

3. A partir de hoje, meu texto sobre a representação do jornalista nos filmes e novelas globais está no La Insignia. A sugestão, como sempre, foi de Urariano Mota, e a edição de Jésus Gómez. O pernambucano Urariano classificou o texto de porreta. Dispomos de palavras magníficas neste país que precisa voltar a ser soberano.

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