9 de setembro de 2004

DEBATE EM CAMPO ABERTO

Seleciono alguns trechos de dois textos disponíveis na Internet. Um é do jornalista William Waack sobre o filme Olga. Outro é do historiador João Quartim de Moraes (autor de A Esquerda Militar no Brasil) sobre o livro de Waack, Camaradas. As palavras dos dois autores servem de insumo para um debate em campo aberto sobre o assunto. Vejo o filme Olga como parte da campanha contra o trabalhismo, mas essa é uma visão pessoal, que nada tem a ver com os textos aqui reproduzidos. Acho importante que Waack, correspondente da rede Globo em Nova York, se manifeste livremente sobre um filme que é totalmente global, do diretor ao marketing. De Quartim li dois livros deles sobre Forças Armadas brasileiras. É um autor original e polêmico, que pega Waack pela jugular. Corre bala na edição de hoje do DF.

ARMADILHA - No seu artigo As tragédias de Olga, escreve William Wack: "A Olga que realmente existiu é muito superior à personagem Olga das telas, e nem mesmo um diretor talentoso como Jayme Monjardin conseguiu fugir à armadilha preparada pelo roteiro. O mundo em que a Olga real viveu não era preto-e-branco - ali os vilões nazistas, aqui os mocinhos comunistas. Ao contrário, uma parcela vigorosa de militantes do PC alemão (aliás, os que representavam as melhores tradições intelectuais do partido) já fora expurgada nos anos vinte por se opor ao corrosivo domínio do próprio partido alemão exercido pelos serviços secretos e polícia política soviéticos. Olga, uma militante de precária formação e pouco interesse por teorias, fazia parte do "aparato M", a estrutura policial interna do PC alemão diretamente comandada por soviéticos. Um dos "expurgados" nas lutas internas, Arthur Ewert, seria, aliás, um dos seus chefes no Rio. Para milhares de militantes políticos daquela época (mas não só), a "causa" pela qual acreditavam lutar, com maior ou menor dose de romantismo e entusiasmo, teve de ser sacrificada aos interesses e ditames do Partido, e essa foi a primeira tragédia na qual Olga se meteu. (...) A segunda tragédia na qual Olga se envolveu foi acreditar na capacidade de liderança, sabedoria política e perícia militar de Luís Carlos Prestes. A extraordinária incompetência do comandante do movimento de 35 está registrada em Moscou em todos os seus fascinantes detalhes - mas a culpa, tiveram de assumir, ou foi atribuída aos subordinados na cadeia de comando, e aos companheiros de Olga que conseguiram escapar da polícia brasileira e foram fuzilados ao retornar à União Soviética. Os chefes nunca erram, o que talvez explique por que militantes brasileiros, agindo sob as ordens de Prestes (e apoiado por Olga), concordaram em assassinar uma moça inocente, Elza, que o chefe do aparato soviético clandestino no Rio, um agente da polícia política de Stalin, achava que poderia comprometer os "estrangeiros" participando da operação de 35, entre eles a militante alemã - mais uma tragédia."

TRAGÉDIA - Continua Waack mais adiante: "Nada disso diminui a tragédia pessoal que se abateu sobre Olga, ao ser presa, deportada e entregue à Gestapo. Diante do velho inimigo, ela mostrou a coragem e a conduta que se esperava de militantes disciplinados como ela (suas cartas a Prestes eram primeiro enviadas a Moscou). Por estar presa, talvez Olga não soubesse do destino que Stalin reservara para quase todos seus ex-comandantes, soviéticos e alemães, além de dezenas de camaradas com quem conviveu no célebre Hotel Lux: a morte. Não sabemos o que Olga teria dito se tivesse vivido para ver o marido e pai de sua filha, apenas dez anos depois, no mesmo palanque do homem que a mandou deportar. Foi a última tragédia envolvendo Olga, o fato de as razões políticas do partido terem feito Prestes, na prática, perdoar em público o algoz de sua mulher. Aí está o significado atual, a mensagem que as tragédias de Olga trazem para o Brasil de hoje. Não é a mensagem do "ímpeto romântico pelas causas sociais", deturpada no caso de Olga por máquinas burocráticas que reduziram seus integrantes a meras engrenagens. É o fato de que o princípio da ação é a consciência, a própria consciência, e que a liberdade de cada um, para terminar usando uma frase da grande figura trágica da esquerda alemã, Rosa Luxemburgo, termina onde começa a do próximo."

CAMARADAS - O historiador João Quartim de Moraes escreveu sobre o livro Camaradas, de Waack. Do artigo do resenhista extraio alguns trechos: "Waack pretende confirmar, em versão civilizada e expurgada das mentiras grosseiras incorporadas pela polícia do Estado Novo à "história oficial" da "Intentona", a principal acusação contra Prestes e seus camaradas: a de que agiram por ordem e a serviço de Moscou. Talvez sua pretensão de abalar mitos e carreiras tenha se alimentado mais do caráter probatório dos documentos que exibe do que da descoberta de algum fato substancial (embora pitoresca, não se pode considerar como importante a revelação de que o café Paraventi serviu de fachada legal para agentes soviéticos). Por mais sincero que possa ser Waack em seu desejo de esquecer a Guerra Fria, o fantasma de Stalin, de Manuilski, de Dimitrov e outros "astutos, inescrupulosos e implacáveis" chefes do Komintern (a adjetivação do autor por vezes lembra um exorcismo em forma de ladainha) interferem constantemente em sua prosa e em seu pensamento.(...) Alguns exemplos, colhidos de maneira inteiramente aleatória (qualquer leitor que abra a esmo Camaradas encontrará de imediato outros tantos): a búlgara Stela Blagoeva, "inquisidora-mor do Komintern" é definida como "antipática, malcuidada, mal-vestida e mal-intencionada" (1993: 323). É provável que Blagoeva fizesse má figura num desfile de moda, mas ao que consta a competência de Waack neste assunto não é tão grande quanto a de Clodovil. O inquietante, nesta e em muitíssimas outras passagens do mesmo estilo, é que, ao assumir desabridamente sua antipatia por seu objeto de estudo, o autor ultrapassa os limites da documentação em que se apóia. Separar a informação da opinião é uma regra básica do jornalismo sério. Uma fotografia pode mostrar como se vestia Blagoeva. Mas que fosse mal-intencionada, é uma opinião "legítima enquanto tal" apressada do leitor como se tratasse de um retrato. Os documentos que cita a respeito da Búlgara do Komintern sugerem sobretudo um zelo fanático, traço caracterológico freqüente em ofícios inquisitoriais religiosos ou leigos."

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