A bola veio do canto do campo, numa altura mínima, como se fosse a roda de um trem que rola sobre trilhos supercondutores, aquele que não faz fricção quando anda. França acompanhou a trajetória da bola como um menino que acompanha um carro, que aposta corrida com ele. Lembrei dos pneus velhos da minha infância, usados para colocar alguém dentro, todo enrodilhado. A turma joga o cara que faz a prova morro abaixo, para ver se ele agüenta ficar rodando dentro daquela borracha fedida. O corpo curvado e as pernas que se juntam aos braços o transformam numa parte do pneu. Os outros acompanham para debochar da cara do sujeito. Um deles é França, o menino que segue a bola como se estivesse num outro tempo, quando havia infância. Os gestos dele se parecem com o que vislumbro na minha lembrança.
PARADA - É uma corridinha típica de garoto do interior. As pernas compridas e magras de França se aceleram como se fosse um Flintstone dando partida no carro com os pés. Há um descompasso entre aquela pressa e a quantidade de espaço palmilhado. Ele no fundo corre alguns metros, mas parece que cruzou toda a rua acompanhando seu objeto de desejo. Os braços também se comportam de maneira típica. Eles se encolhem, para economizar vento e criar o gesto adequado da aceleração. O cabelo de lã do nosso artilheiro segue o percurso do corpo. França não tem corpo de atleta. Suas pernas muito finas, seu corpo aparentemente frágil, seu andar que mais parte para o desengonço do que para elegância significam que ele faz parte dessa linhagem de craques que nada tem a ver com o corpo sarado de outros esportes. Um Maradona ou um Garrincha são aqueles companheiros de rua que, muito pequenos, nada tinham a ver com esporte, a não ser que faziam tudo com uma bola qualquer. França tem um corpo comum, desses que a gente vê todos os dias, nos ônibus, nas calçadas, nos escritórios e fábricas. Não era para estar exposto na mídia mundial, participando da Copa dos Campeões, defendo o Bayern Leverkusen contra o Real Madri. Era para estar na parada de ônibus, preocupado com o atraso da lotação. De rosto carregado, ele está esperando o coletivo e lembra um dia em que acompanhou o pneu com alguém dentro. Seus olhos então se descontraem com a lembrança. Ele correu até lá embaixo, no fim da rua, para ver como o cara saía do pneu, todo tonto. Era então o primeiro a pegar o cara para rodopiá-lo ainda mais, pois o engraçado era vê-lo tentar ficar em pé e depois cair.
SURPRESA - França estava correndo ao lado da bola que não tocava no chão e todos esperavam o clássico chuveirinho europeu. Outros jogadores estavam à espera do seu lance. Queriam receber a bola pelo alto para cabecear em direção ao arco. França poderia fazer o previsível: dar um totózinho esperto por cima dos zagueiros para entregar a criança nos pés de um companheiro, colocando-o cara a cara com o gol. Mas ele estava correndo atrás do pneu, não jogando uma partida de futebol. Sabia que a bola estava na medida para alcançar sua verdadeira rota, a que foi intencionalmente posta em jogo quando alguém passou para ele. A bola precisava ir para o gol, mas deveria passar antes por França, que saberia colocá-la no lugar certo. Mas França surpreendeu todo mundo. Seu corpo todo encolhido, do menino que corre, que dá tudo numa arrancada para participar daquela turma impossível, de repente se desenrola como um novelo de fios de ouro, que um segundo antes davam a impressão que ficariam para sempre na mesma posição. Os pés de Flintstone passam imediatamente para a câmara lenta. O esquerdo serve para dar apoio (ele toca no chão? nunca saberemos) e o direito então consegue pegar a bola meio por baixo, já que ela vinha numa altura mínima. Então ele bate sem dó com o peito do pé, ou melhor, a parte posterior do peito do pé, numa posição de trivela (três dedos) centralizada. Na hora que ele bate, já é tarde demais. Os atacantes podem desistir, os zagueiros lamentar. Só o goleiro não quer render-se às evidências.
TEMPO - O goleiro deveria saber do que se tratava, mas não sabia. Achava que poderia defender o chute certeiro, que partiu bem da base do chão e foi ganhando altura como a águia que já fisgou o peixe antes do mergulho fatal. O goleiro teima em querer saber mais do que artilheiro e atira-se, espichando-se todo. Mas na hora em que França bateu, a bola já tinha cruzado o último reduto da mão do goleiro. Já tinha passado, pois o chute de um artilheiro viaja na velocidade da luz. O goleiro fez bonito, atirou-se com tudo, para sempre. Mas a bola beijou o véu da noiva, como dizia a crônica esportiva daqueles tempos em que havia infância. A comemoração do gol foi reveladora. França imitou o passo em falso de um boneco de mola. Era sua maneira de comemorar. Dizia com isso: meu corpo surpreende, jamais vocês irão me pegar. Ele foi então agarrado, abraçado, sufocado pelos seus companheiros. A sorte é que existe replay. Foi no replay que vi França chutar em gol, depois que ele já tinha feito o serviço. Vi apenas uma imagem de uma representação, o repeteco de algo único. O replay foi feito para aplacar a curiosidade dos distraídos, os que desistem de ver o jogo antes que este chegue ao esplendor. Quando houve o gol, nessa vitória contra o Real Madrid na terça-feira, que tinha fenômenos saindo pelo ladrão, e França saiu pisando em falso como um moleque de rua de antigamente, e todos abraçavam o brasileiro que reinventou a dança do pneu usado, eu já estava fisgado pela mágica que caiu sobre a tarde. Todos viram o que eu vi. Mas só as palavras poderão resgatar o que o lance encerra na sua misteriosa performance de realidade invisível. Foi um gol que estilhaçou a vidraça do dia, provocando algazarra geral na vizinhança e nos lembrando o quanto podemos ser maiores quando somos apenas a mesma coisa de sempre: humana fantasia, prisioneira no tempo eterno e perecível.
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