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11 de novembro de 2003
O PRIMEIRO JORNAL DO MUNDO
Chamava-se Sai-Lasca, era feito à mão e tinha apenas um exemplar, que era lido aos berros no recreio do Colégio Santana pelo seu editor, que possuía cicratizes de um acidente na infância, quando visitou o circo e teve parte de seus músculos do braço e dos lábios arrancados por uma fera enjaulada. Por isso, atendia carinhosamente pelo apelido de Puchero de Tigre. Puchero é um espanholismo que significa comida.
SUCESSO - O Sai-Lasca era um sucesso absoluto. Todos os alunos aglomeravam-se ao redor de Puchero, às gargalhadas, para saber das suas últimas sacadas sobre professores, colegas, irmãs de colegas, mães em geral. Eu tinha verdadeira admiração pelo primeiro jornal do mundo. Era tudo obra de Puchero, que também fazia narrações esportivas, colocando um ramo sem folhas, bem fino, para imitar antena, atado a um tijolo que fazia de conta ser um microfone. Os eventos que narravam eram brigas homéricas acontecidas fora do colégio. Todo mundo prestava atenção no narrador, mais do que na briga. A descrição da pauleira era absolutamente hilária e lembro que sentávamos na calçada de tanto rir. O Sai-Lasca gerou uma série de epígonos, nenhum tão bom quanto o original. Esse pequeno veículo significava a liberdade da minha geração, criada na agitação do Brasil pré-64 (o golpe que destruiu o país), que tinha sido criada na disciplina e experimentava a alegria da agitação política, cultural e comportamental. No salão nobre do colégio, o grande futuro ator Miguel Ramos (que fez uma ponta impressionante em Netto perde sua alma, filme de Tabajara Ruas e Beto Souza, entre outras admiráveis performances) imitava Juca Chaves cantando Presidente Bossa Nova. Um colega chinês cantava (bem) o sucesso Oh! Carol, com todas as nuanças de voz a que tinha direito. Nesse mesmo espaço, davam-se as grandes tertúlias poéticas, onde pontificavam declamadores como meu irmão Elo, um carismático recitador de versos gaúchos. Eu morria de vergonha de ter de subir ao palco e ficava na minha, para depois ir correndo escrever alguma coisa na máquina Smith-Corona, de tipos manuscritos, que ganhei de presente do meu pai e perdeu-se para sempre numa mudança quando eu estava em Porto Alegre.
PASSAGEM - Por falar em Elo (atualmente babando seu primeiro neto na Nova Zelândia), transcrevo aqui um texto que ele me enviou, a meu pedido, e que gostei tanto que está incluído no meu romance, ainda inédito, que pode ser publicado no próximo ano: “A vez primeira que me levaram numa caçada de capincho ou pescaria foi depois de eu ficar muito tempo, vendo diversas saídas dessas, com cara de também quero. O seu Ortiz me disse devereda, vamos guri, e eu subi na carroceria de uma caminhonete. A mãe fez cena e no fim me deu uma trouxa com alguma roupa. Me fui, ou melhor me levaram. Era mui pequeno e nem lembro bem dos detalhes do transporte, talvez nem importasse. A ansiedade era grande, e se desmanchou quando o Compadre Magro e o Ulisses Villar me disseram que nós ia caçar no Passo do Cemintério.Sei lá hoje onde fica, mas depois de algum tempo, em estradas daquela época, se chegou num lugar que tinha um arroio que atravessava a estrada, era o Passo, passagem. Uma passagem par mim também. O cemintério? Não vi. Talvez nem existisse, fazia parte dos ritos de iniciação: assombrar as crianças.Armaram acampamento, daqueles que tu sabe, a moda dos três parceiros. Gosto pela vida, pelo ar livre, pelo mato, pelo cheiro da fumaça, pelas histórias recontadas, pelas bravatas de pegar, pontaria e outras mais.Era sábado de tarde, e de repente eles saíram cada um para seu lado, ou dois prum lado e o outro pra o lado contrário, procurando capincho a pé pelas barrancas do arroio. Fiquei solito, loco de assustado. Mais pelo cenário, que pelo cemintério. Era mato, uma clareira no mato, pro lado que se olhava se via mato, e ouvia barulhos, talvez metade inexistentes. Foi anoitecendo, escurecendo e nada deles voltarem.Quando chegaram eu estava tangido pelo medo. Quieto, sentado na beira do fogo, colocando lenha, esperando, imaginando, voando. Nada de capincho.Me colocaram num pelego, e dormi depois do churrasco de carne que eles levaram. Com bolacha, que ficava num lata com tampa pra não endurecer, no entanto ficava molenga, que precisava colocar na trempe para dar uma melhorada. Não tinha refrigerante naquele tempo, e nem se bebia nas refeições. Eles não eram de beber nem vinho. Cerveja? só no verão e assim no primeiro dia, que era o tempo que o gelo comprado na "fábrica" de gelo durasse. Essa do Passo do Cemintério ainda era uma caçada/pescaria de pobre. O Ortiz ainda não tinha colocado as mãos nos pilas. Mas me lembro de alguns detalhes, do mato quando entrei pra ver se achava capincho junto com o Pai, na manhã seguinte. Das barrancas do arroio, baixas, de modo que os capinchos pressentiam o andar dos caçadores se iam à água. Mas deram sorte, mataram um ou dois. Tiraram a buchada e deixaram para serem carneados por um índio da cidade que era especializado, em tirar o couro e extrair o óleo ( argh! - tu não passaste por isto). Levavam os bichos prá lá na volta e pegavam as carnes e parte do óleo que prevenia doenças de inverno. Acho que deixavam o couro pro cara e algum dinheiro. Minha primeira saída, com dormida no mato, acho que foi por aí que peguei gosto pelo acampar, que agora se chama camping, e só tem chato.Mas o café de manhã fria, com cerração levantando das águas do rio, eu sempre tomei café preto, com bolacha esquentada nas brasas, um resto do churrasco, um sonho, essa hora era a mais prazeirosa, e ainda é até hoje. Mesmo dentro de casa, saio pra comprar o pão, monto a mesa e leio jornal enquanto tomo café. Até quando estou solito.”
RETORNO – Finalmente o espaço dos comentários está sendo preenchido pelos leitores desta coluna, a maioria deles também com blogs, que devem ser visitados e admirados, pois todos possuem excelente qualidade. Aos poucos, vou colocando os links, uma operação que eu não domino, pois sou o único blogueiro do mundo que tem a ajuda de um webmaster (meu filho Miguel). Daqui a pouco, comento os comentários. Agora, à luta!
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