10 de novembro de 2003

ALIANÇA COM OS LIVROS

Empresas de comunicação deveriam ter bibliotecas amplas, com bibliotecário(a)s contratado(a)s para atender os jornalistas, que são pagos para escrever e precisam ser estimulados e abastecidos por leituras mais profundas do que artigos e reportagens. Mas, mesmo com essa precariedade – a ligeireza do conteúdo diário nos veículos de comunicação – basta um bom texto na imprensa para ganhar o dia.

FRANCISCO FAUSTO - Este jurista, presidente do Tribunal Superior do Trabalho, escreve hoje na página três da Folha sobre os 60 anos da CLT, outorgada por Getúlio Vargas em 1943, e diz coisas como o seguinte: “Tínhamos conquistado a indústria do aço em trabalho de engenharia política internacional liderada por Getúlio Vargas.” Parece óbvio, mas diante da campanha contra nosso estadista, é sempre bom ver esse tipo de constatação ser publicada. Continua: “Hoje fala-se em pôr um fim à era Vargas e cada vez que se dá um passo nesse sentido é como uma marcha de Átila sobre o campo onde não nasce grama.” O jurista chama a atenção para o sucateamento das leis trabalhistas: “Esse retrocesso nos passa a sensação de que a evolução do fato social brasileira caminha às avessas: do presente para o passado. “ E pergunta, depois de destacar fatos como a volta do trabalho infantil e escravo e o aumento do desemprego para 20% da força social ativa: “Qual era devemos adotar no lugar de Vargas? A era Alca ou a era FMI?” Vejam que essa é a opinião de um erudito e não a de um escritor e jornalista gaúcho como eu, que fica aqui diariamente batendo nessas teclas que esse artigo maravilhoso tocou de maneira tão soberba. Agora, podem acreditar no que estou falando. A nova lei, segundo o doutor Fausto, “falou, em verdade, a linguagem dos mais fracos no discurso conciliador da elite política”. Alguma dúvida?

ROLAVA PROUST – Na minha casa, a obra de Proust, Em Busca do Tempo Perdido, rolava pelas estantes, armários e sofás. Sinal de que essa edição da antiga editora Globo era lida naquele tempo, quando eu confundia esses livros fundamentais com “leitura para moças”. Hoje, ao terminar o primeiro volume dessa mesma edição, fico abismado com a imensidão da minha indiferença no tempo em que era garoto. Cheguei a fazer uma quadrinha intitulada Proust: “Obrigatório em qualquer encarnação/ Melhor ler nesta/ para não perder tempo.” Outro livro “para moças” (minhas irmãs liam muito) que me deixou impressionado foi O Morro dos Ventos Uivantes, de Emily Bronté, que li de uma vez só. Minha casa tinha a coleção completa do Monteiro Lobato, proibida pelos padres (morávamos em frente ao colégio dos irmãos Maristas), mas que sempre foi nosso civilizador maior. A coleção O Mundo da Criança também fazia bonito e foi completamente debulhada de tanto uso. Tínhamos ainda a Coleção Província, onde tomei contato com João Simões Lopes Neto e um pouco sobre a história do Rio Grande do Sul. Na biblioteca do Colégio Santana, naveguei na coleção completa de aventuras do Emilio Salgari, entre outras leituras. Minha mãe, leitora ardorosa de Erico Veríssimo, Mario Quintana e Jorge Amado, entre outros, me levava pela mão para a literatura brasileira. Meu pai, que tinha abandonado a escola quando, aluno brilhante do terceiro ano primário (foi tão bem no primeiro, que os professores o fizeram pular o segundo ano) recebeu uma reguada da professora que não gostou de vê-lo se espreguiçando em classe. Ele contou a vida toda essa história, sempre muito magoado. Por isso fez questão que todos nós tivéssemos diploma. Ele também lia sem parar. Lia o Correio do Povo (que era imenso) inteiro, até os anúncios e, desconfio, os classificados. Costumava dizer: “Tem gente que não tem cultura nem de Seleções”. Em casa, além das Seleções, líamos as revistas Alterosa (de Minas), Manchete, Cruzeiro (das grandes reportagens), e as argentinas Para Ti (feminina) e Billiken (infantil, com as impagáveis historietas do pássaro Paco-Pum e as peripécias de Pelopincho e Cachirula). Claro que ninguém ouviu falar dessas últimas. Pertencem ao Mundo Perdido.

EMOÇÃO E SOBRIEDADE - Minha relação com os livros, portanto, foi sempre de uso e convívio (especialmente nas longas noites de inverno), e não de status intelectual. A arrogância da pose dos literatos metidos a intelectuais sempre me deu urticária. Ler livros, para mim, faz parte da formação passada pelos pais e pelo ambiente onde vivia. Os livros tinham as orelhas dobradas de tanta leitura, já que eles passavam por todas as mãos, eram emprestados para os vizinhos. Assim mesmo, com toda essa manipulação, herdei intacta toda a coleção infantil do Monteiro Lobato, que meus filhos também “leram, releram e requete-leram”, como dizíamos em Uruguaiana. Quando escrevo sobre um livro, é com paixão, com alegria e com a maior dose de lucidez possível. Não quero afastar os leitores da obra que estou comentando. Quero que abracem o livro como um velho amigo, como um amor correspondido, como uma tábua solta em alto mar. Náufragos dessa vida dura, somos acompanhados pela produção cultural dos nossos semelhantes, absolutamente geniais e maravilhosos. Isso não elimina a necessária sobriedade na leitura, pois passei vinte anos estudando História do Brasil, lendo as maiores pedreiras com a mesma satisfação. Tudo isso não me faz um intelectual. Sou apenas um brasileiro que os livros carregam para uma vida mais generosa.

RETORNO – Achei que não conseguiria escrever aqui todos os dias. Estou conseguindo. Mas talvez o Diário da Fonte enfrente alguns intervalos. Espero que não. Vamos ver.

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