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5 de outubro de 2003
VIOLÊNCIA FORA DE CAMPO
A eliminação física do Outro começa com o mau uso de adjetivos, verbos, substantivos, conjunções e advérbios. Xinga-se antes de matar, mas o que é mais grave, engendra-se pensamentos tortos por meio de palavras viciadas para justificar ações violentas. Uma boa solução é acompanhar o noticiário esportivo, que é uma arena de representação do conflito e de promoção do equilíbrio.
DEBATE – Numa lista que deveria ser fina, de pessoas cultas e educadas, e que defendem teses acadêmicas importantes, chamei a atenção contra essa tentativa de excluir o interlocutor por meio das mais baixas vilanias. Criminalizar o debate é uma tentação, principalmente nesta época de e-mails, que é fácil, veloz e não dispõe da presença física de outra pessoa. A tentação de “acertar” alguém está disseminada por todo lado. Ontem mesmo, num estacionamento de um shopping quase fui atropelado por um automóvel desses de luxo, e fui salvo porque duas pessoas gritaram e bateram na lataria alertando a motorista . Passei então pela experiência de testemunhar a reação da jovem e audaz volante, completamente errada, mas cheia de razão (duas coisas que andam de mãos dadas), furiosa porque tinham passado a mão no carrinho dela. Foi mais uma prova de que muitas pessoas, no seu pequeno mundinho de conforto, gostam de tratar o resto da humanidade como lixo. Não sou um bom exemplo de equilíbrio na hora do pega, mas a idade me fez ser mais prudente e muitas vezes entro para apartar, para tratar o evento como transitório e que não deve deixar seqüelas. É que entrei em brigas homéricas por nada e fui parar em lugares terríveis, coberto de sangue. Morrer por ninharias não é um bom programa de vida. O destempero não é um bom conselheiro. Melhor é envolver-se com esportes, que mesmo atraindo grandes paixões, sempre deixa espaço para a análises mais elaboradas, como prova a presença de grandes jornalistas como José Trajano, Juca Kfouri, Armando Nogueira, Luciano do Valle e o magnífico (e cada vez mais ausente) Juarez Soares, sem falar no rei dos bordões, Sílvio Luiz, e no antológico Fiori Gigliotti (autor do maior verso do esporte mundial: "Lá vai a lua branca rolando num céu de grama"). A seguir, um texto que tem alguns anos, mas que gosto demais.
CHUTES A GOL - Chute a gol tem nome. Chedinho, por exemplo, é quando a bola pega na veia e evolui, sutil, colocada, como faz hoje Marcelinho, às vezes Sávio (lembram do Sávio?) e antigamente Neto. O chedinho faz parte de uma linhagem que tem como divindade a folha seca.
O oposto do chedinho é o bostaço, capitaneado por especialistas como o aposentado Branco, Célio Silva e Roberto Carlos. Bostaço nem sempre é gol, mais é marca na barreira, trajetória para a arquibancada e, muitas vezes, arma. Teve gente que já morreu em conseqüência de bostaço, mas é muito raro. O normal é furar a rede, como faziam Pepe ou Quarentinha.
Às vezes, até Juninho dá seus bostaços, e ele também já fez muito gol de chedinho. Mas sua especialidade, o gol espírita, como a obra-prima na diagonal e em curva contra o Uruguai, no Pré-Olímpico, merece uma nova definição. A proposta é dar a esse tipo de chute a gol o nome do próprio autor. A característica de um juninho é a surpresa absoluta, que emudece por um milissegundo o estádio, os adversários, os companheiros, os telespectadores e, pasmem, Galvão Bueno.
Nesse lance, nossa visão estava dividida entre o erro previsto - a bola parecia ir para a linha de fundo - e o objetivo reconhecido pelo próprio Juninho, que eram os pés de Caio. Mas por ser um gol com nome de batismo, que obedece ao Espírito do goleador - e não à sua razão - ele cria o hiato, surpreende a câmara, dribla o olho, confunde os torcedores.
Com o gol contra o Uruguai, a platéia de argentinos, que, como sempre, secava, muda radicalmente de comportamento, humaniza-se, entrega-se, enfim, ao Outro, esta entidade que sempre soube negar.
A comemoração de um gol argentino ou uruguaio é um ritual de vingança, é a euforia de ter dado uma facada certeira, a celebração de um assassinato. Diante de um juninho, as mãos perdem a rigidez e, no final do jogo, aplaudem seus inimigos de camisa amarela.
A civilização platina reconhece assim, não a hegemonia adversária - que isso seria contrariar princípios gravados em bandeiras brancas e azuis -, mas a sagração de uma outra cultura. Os jogadores brasileiros transformaram-se, com seu virtuosismo, em instrumentos de uma religião, o futebol da camisa canarinho, e toda a religião que faz milagres merece, pelo menos, respeito.
O juninho é, como o chedinho, uma oração contrita de um ritual que, em dia de inspiração, pode converter o gentio. Já o bostaço, grife da era Dunga, é o chicote que paga com a mesma moeda a incrompreensão da barbárie.
Aquele chute de Pelé do meio do campo contra a Tchecoslováquia, na copa de 70, é uma espécie de síntese histórica dessas três manifestações. À distância, parecia um bostaço, pelo efeito, foi quase um chedinho, mas pela lenda que criou, já era uma espécie de pai de um juninho.
PAZ – Um dos poemas do meu novo livro, que tem uma parte toda dedicada à paz, centrada na figura do nosso grande Sérgio Vieira de Mello: Não digo fatalidade/ Quando a vontade decide/ Não está nas mãos de Deus/ O caminhão de explosivos// Não digo fazer o quê/ Quando matam o estadista/ Não me coloco à mercê/ Das imposições do crime// Não me conformo perder/ o que de fato já tínhamos/ Não posso me recolher// Quando a metralha se anima/ A História mais uma vez/ Não me protege, me obriga.
RETORNO – O jornalista Roberto Nogueira, que revelou-se um fotógrafo de mão cheia além de ser um repórter magnífico, gostou das observações que fiz sobre a intervenção estatal na mídia. Diz ele: “Estou lendo vários textos sobre ética e imprensa, teoria das comunicações, tendências atuais, media setting etc. Se tiver algo ou alguma fonte de consulta, por favor, me informe.” Eis um apelo também para os leitores desta coluna, que nos últimos dias têm estado em número cada vez mais decrescente e bem que poderiam dar um sinal de vida.
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