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10 de outubro de 2003
O LEITOR NEM IMAGINA
É costume abrir reportagens ou artigos apostando na ignorância de quem lê ou na sua incapacidade de imaginar qualquer coisa. Isso também se estende aos personagens da matéria. O jornalista que comete essa gafe “não imagina” que informação não pode servir de demonstração de força, nem que a articulação do pensamento não pode ser vista como uma exclusividade de quem escreve, ou que o leitor não merece ser tratado como um indigente mental.
FÓRMULAS – Uma das construções escolhidas é “Fulano jamais poderia imaginar que...” É uma conclusão vazia colocada no início de um texto jornalístico, o que é uma contradição, pois como você pode concluir antes de propor? Normalmente, o repórter não pergunta se o Fulano imaginou ou não. Não se trata de um fato, mas de solução de linguagem, de pseudo-criação. Outra coisa recorrente é o “leitor desavisado”. Como você pode garantir que o leitor não está prevenido? Acho que não existem leitores desavisados, eles estão bem conscientes que estão lendo a matéria, super atentos aos seus erros e normalmente informados sobre o assunto. Pois informação não é mão única, é algo compartilhado. Não existe, portanto, motivos para arvorar-se numa ascendência sem base. Mais uma: o repórter propõe uma pergunta que em tese demandaria uma resposta óbvia. Então ele tasca: “Certo?” E depois surge com sua magnífica intervenção: “Errado!”. Com perdão da palavra, acho esse tipo de coisa de uma babaquice total. Sempre me irrito com isso. Por que não fala logo em vez de tentar criar suspense e demarcar bem o território do gênio que escreve e o bobalhão que lê? Na televisão, esses lugares comuns são um assombro de redundância. Sem falar no dedinho apontado para o telespectador e o sarrinho implícito que há quando se referem ao “sofá”. Com o se o telespectador quisesse apenas folgar, estivesse ali no sofá à mercê dos jornalistas que levam sua comidinha informativa na boca. Quando falam em sofá, tenho urticária. Depois da invenção do zap, as pessoas que aparecem na TV deveriam ter mais compostura.
ESCUTAR - Fala-se muito que o jornalista precisa escutar, que todo mundo precisa ouvir, mas não dizem como. Escutar é uma atividade em desuso. As pessoas falam ao mesmo tempo e estão sempre pensando no que vão dizer, por isso fecham-se em copas. O que há são falsas expressões de atenção, enquanto o pensamento voa longe. Numa sociedade de escravos como a nossa (em que todo mundo é senhor) escutar é encarado como um ato passivo de servidão. O escravo escutava o feitor de cabeça baixa e nem abria a boca. Para insurgir-se contra essa herança até hoje vigente – o da servidão absoluta em plena ditadura – as pessoas se revoltam abrindo o bico a toda hora. Escutar é como escrever um texto, é compartilhar com o leitor, ou com quem fala, de algo que é comum à humanidade. Para escutar é preciso limpar a mente de todo pensamento, exercitar-se em entender o que o Outro está dizendo, abrir-se com vontade, apostando que você vai aprender com ele, ou também como uma forma de boa educação. Não se deve cair na armadilha de ficar repetindo o que o outro diz simplesmente para esvaziar a frase dele de qualquer poder, para checar se o interlocutor está dizendo agora o que disse ontem ou há alguns minutos. Escutar é um exercício ético. É preciso, por isso, deixar de tentar completar as frases do Outro, como se você fosse um serviço digital automático, como se a pessoa que fala não tem mais nenhuma surpresa para você.
APROPRIAÇÃO DA FALA - Muita gente só escuta se consegue apropriar-se da fala. Funciona assim: um diz e o outro boceja. De repente, algo parece ser muito interessante. Finge-se que não se está prestando atenção, mas daí a pouco a pessoa vem e aplica exatamente o que foi dito. Como se o Outro jamais tivesse dito nada. Se você reclamar, aí mesmo que não será escutado. E se você espernear, fica com fama de reclamão. Isso acontece todo o dia. Sinal de que vivemos no meio do desprezo à pessoa humana, como acontece em todos os setores da atual ditadura civil em que nos encontramos. O rapaz que foi assassinado depois de derrubar o radar, diz uma testemunha, levou o tiro de alguém que nem mostrou arrependimento. “Matou como se tivesse matado um passarinho” disse a testemunha na Band ontem. Pois não escutar e apropriar-se da fala alheia é também um crime contra as pessoas. Gente da elite intelectual faz parte da ditadura quando se apropria da fala dos outros. São os mesmos que desmoralizaram o termo Direitos Humanos no Brasil, deixando que a direita tome conta desse assunto (o cacete do presídio Ary Franco, que matou o chinês, era apelidado de Direitos Humanos). E mais uma testemunha contra os exterminadores dançou. A ditadura assim peita as autoridades internacionais dos Direitos Humanos na maior cara de pau. Num país que despreza o semelhante, nada mais natural.
RETORNO – Ontem o professor Carlos Chaparro obteve ampla repercussão no Comunique-se abordando a necessária separação entre jornalismo e da publicidade. Escreve Chaparro: “Jornalismo não é melhor nem pior que publicidade. São apenas linguagens diferentes, para interações sociais organizadas por expectativas diferentes. Mas, embora convivendo em espaços comuns, publicidade e jornalismo não devem se misturar.” No dia 21 de setembro, o Diário da Fonte também deu sua contribuição ao assunto: “Credibilidade de um veículo não-corporativo é a separação entre jornalismo e publicidade. Nos corporativos, as duas atividades podem ocupar o mesmo espaço, desde que se preserve, no jornalismo empresarial, alguns princípios básicos. O anúncio e o marketing precisam ser aliados, mas não cúmplices nem inimigos das redações”. Esse é um tema que precisa ser bastante discutido, pois pega firme nas redações.
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