11 de outubro de 2003

TRABALHAR COM LIBERDADE

A disciplina é o método mais eficaz para exercer o ofício com liberdade. Disciplina não é punição, assumida ou imposta, e não medra na solidão, mas na solidariedade. Como no cinema, o jornalismo é trabalho coletivo e precisa reverter a atual situação, em que o discurso ético é pregado nas escolas, mas na prática o que se vê é a reprodução infinita do sistema de ditadura civil.( Leia o perfil de sábado: hoje é Mino Carta).

DEMOCRACIA, ONDE? - O Canal Universitário (CNU) apresentou extensa reportagem sobre a profissão, com destaque para uma aluna que falou exatamente o que está acima: a de que na faculdade os professores destacam o caráter ético da profissão e basta colocar o pé para fora para descobrir o óbvio: violência explícita nos horários, remunerações, relações de trabalho, abordagem dos assuntos. Os hierarcas que pontificam e a “massa” que fica pastando. O tremendo enxugamento que foi conseguido com os avanços da tecnologia foi repassado para recuperar o tempo perdido do poder: em vez de os jornalistas usufruírem do dinheiro que foi economizado com os novos custos de gráfica e com a acumulação de tarefas (um repórter hoje pode ser pauteiro, redator, fotógrafo), serviu para brutalizar as criaturas. O CNU também veiculou um programa assustador sobre o MST . Um dos líderes do movimento falou com todas as letras que “parece o tempo da ditadura militar” pois a repressão invade a sede de um movimento social sério para efetuar prisões. A resposta está sendo insistentemente colocada nesta coluna: não estamos mais na ditadura militar, mas na ditadura civil. Não temos democracia, temos a imposição brutal da repressão em todos os estamentos da sociedade. Perguntem ao Fernando Gabeira, que foi humilhado ontem pelo José Dirceu. O maquiavelzinho de província marcou com Gabeira (possivelmente seu desafeto desde a época do movimento estudantil), mas deixou-o esperando por uma hora para depois não recebê-lo. O Deputado Gabeira agora sabe o que é fazer parte do grosso dos cidadãos sem importância do País. Recebeu uma lição do governo que arrega para os ruralistas transgênicos e deixa importar pneu velho do Paraguai. Lembro sempre do Tarso de Castro, que dizia, ao ver esse tipo de coisa: “Dá vontade de pedir cidadania de cachorro paraguaio”.

LIBERDADE, AQUI – Pode-se argumentar que hoje conseguimos dizer o que bem entendermos. Não é verdade. Vai dizer o que pensa na grande imprensa, para ver o que é bom para a tosse. Só se escreve com liberdade quando há uma decisão pessoal para isso, esteja a pessoa numa ditadura ou não. Não vi na falsa democracia de hoje nada parecido ao que foi publicado na época do regime autoritário civil/militar (1964/1985). Não estou falando das denúncias, essa prática que serve de trampolim para voto e que nunca dá em coisa nenhuma, já que o que prevalece é a manopla de urso com garras da truculência. “Não acontece nada” dizia ontem na TV um deputado inconformado com os assassinatos das testemunhas do crime organizado. Escrever com liberdade não é fazer denúncia, é fazer papel de bôbo. Nada mais ridículo do que você dizer o que pensa, mostrar nossa precariedade humana, nossa vida datada, nossa falta de esperança ou nosso otimismo sem base. Escrever com liberdade é conseguir publicar e morrer de arrependimento depois, porque a autocensura nos pune sempre que a desmoralizamos. Escrever com liberdade é queimar-se em praça pública, pois o mercado é composto de reis da cocada preta, todos sérios e compenetrados, maduros na sua capacidade de mentir a si mesmos. As análises de alguns articulistas da política e economia me parecem uma defesa dos seus próprios investimentos. Aquela “seriedez” toda, de olho nos números e nas tendências, lembra o ímpeto potencial de colocar a grana pessoal no primeiro banco suíço. Quando o saldo é portentoso, as pessoas ficam tremendamente complicadas. E dançam conforme a opereta: o vento vira, mas seus textos costumam ser arrivistas, ou seja, querem chegar primeiro em tudo.
Escrever com liberdade é ficar no fim da fila. Não é um bom programa, mas que é um remédio magnífico contra a hipertensão, lá isso é.

Perfil do sábado – Mino Carta

Na redação do Mino, escrevi o que quis e me arrependi algumas vezes, quando me deixava tomar por fantasmas, no lugar de me disciplinar melhor, e viver aquela situação democrática com mais responsabilidade. Quando se aproximava o dia do fechamento (sempre às quartas-feiras) começava a tremer. Era o medo de não estar produzindo à altura do espaço que ele me abriu na sua redação, que enquanto Mino esteve lá, foi a melhor do País.

Maior jornalista do Brasil, o melhor de Mino é impublicável:
- As coisas no Brasil costumam ser a mistura de QI baixo com sacanagem, dizia na redação da revista Senhor, nos anos 80.
Cansado dos nossos erros, fazia mais uma das suas provocações ao País que adotou:
- Precisamos deixar de ser tão brasileiros.
Sobre os colegas de profissão, era fulminante:
- Os jornalistas brasileiros são um bando de cretinos.
Claro que ele falava de seus desafetos, que, acredito, não são muitos.
Suspirava fundo em todos os fechamentos, amaldiçoava a sorte e concluía:
- Este é o balanço.
Nas reuniões de pauta, sacudia os óculos enquanto passava os olhos por todos:
- E então? Nenhuma migalha de uma idéia? desafiava.
Quem tivesse a idéia, assumia o encargo. Por isso, a moita geral.
Mas não havia ninguém mais correto e com mais coisas para ensinar, o que costumava fazer com suas tiradas:
- Você não pode tentar enganar o leitor, que ele descobre. A legenda tem de obedecer a ordem das pessoas da foto, quem estiver na esquerda é citado primeiro. A foto precisa entrar na página em que a pessoa é citada.
São princípios básicos, que nunca eram obedecidos nos outros veículos e que, sob a supervisão do Mino, eram implantados naquela redação.
Pintor de primeira, desenhava toda a revista:
- A estética contém a ética.
Tudo parecia óbvio, mas era apenas clássico.
Fazia a revista com classe, que traz de formação e de berço. Eu achava, antes de conhecê-lo, que um grande jornalista tinha outro tipo de comportamento, que conseguia as coisas de outra forma. Mas ele mostrou que o caminho é simples. O difícil é seguir reto nele.
Para ajudar, dispunha de um imã natural, que faz acontecer as coisas à sua volta. Quando viajava, nenhuma pauta dava certo. Era só voltar, que tudo acontecia.
Parecia mágica.
Gostava de dividir os corações:
- Afora Fulano, que trabalha como um cachorro, o que fazem os outros?
Entrei para a equipe do Mino Carta de maneira transversa. Fechava sozinho a Senhor quinzenal, dirigida pelo Múcio Borges da Fonseca, que um dia me anunciou:
- O Mino vai assumir a revista e você não vai ficar.
Um jornalista sem importância não acredita em destino. Decidi:
- Vou ficar, sim.
Ofereci a seção de livros, que estava praticamente montada, faltava apenas o principal: os colaboradores.
- Vamos fazer uma seção significativa, disse Mino, depois de me aceitar, graças à intervenção de Wagner Carelli. Com a indicação de Luiz Gonzaga Belluzzo, montei a equipe de colaboradores, todos acadêmicos.
Até a Zélia Cardoso de Mello publicou resenha lá. Mas o melhor era Luís Salinas Fortes, o filósofo, que morreu do coração logo depois.
Salinas custava a desovar a resenha. Tinha excesso de autocrítica.
Foi o trabalho mais importante de um jornalista sem importância. Graças ao Ogro.
- Não fale assim com o Mino, advertia Carelli, escandalizado com minha ingenuidade no trato com o poder.
Carelli, especialista em Mino, olhava para os lados enquanto dizia isso. Acho que era para me assustar.

RETORNO – Roberto Nogueira chama a atenção para o excelente artigo de Paulo Nogueira Jr., uma das exceções do comentário econômico e político, sobre as posições do Brasil em relação à Alca e as pressões que estão se desencadeando contra. Escreveu Nogueira Jr na Folha de São Paulo do dia 9: “É o que sempre acontece. Toda vez que algum governo ousa defender com firmeza os interesses brasileiros, os estrangeiros e os seus aliados tupiniquins armam uma tremenda intriga.”

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