Nei Duclós
DORSO DE LOUÇA
Não conteste o poema
Não porque seja fruto de certezas
Mas porque os anjos sopram
Suas sílabas sobre o vento
E as velas levantam em direção ao norte
Com o tempo fechado em todas as comportas
Deslize em seu dorso
Navio gigante que aporta numa louça
E consome a fome de perguntas
Se a política foi o motivo
Da ruptura depois do conflito
É porque não prestava o vínculo
Cultivado pelo sentimento
Dói assim mesmo, inconsequente
Não faço estardalhaço
Não chuto o balde
Nem digo que vou viver no anonimato
Não posso fugir
flor de cacto
Moro no sonho desfeito
no moinho abandonado
Tenho tantos livros
Um dia não estarão mais comigo
Farão parte do teu pão, teu abrigo
E nem lembrarás
que fiz sangrando
PASSAGEIRA
Você melhora a cada dia
Renova o sonho, fica na sua
Escreve ensaios e compartilha
Viaja ao Butão depois à India
Volta só para ver a família
Quer outro mundo e por ele briga
E eu?
Eu espero
De guarda chuva aberto o fim do inverno
Quando virás trazendo sementes
Que plantaremos em terras de conflito
Por enquanto leio tuas cartas
Passageira noturna
EUCARISTIA
Ficamos mais próximos de Deus conforme a idade avança
Não íntimos porque não existe espaço doméstico no paraíso
e ninguém toca a tunica da divindade para saber de que pano
é feita
Ficamos como irmãos do Senhor a jogar dominó com os anjos
E imagino que ao chegar aos cem O trataremos como Filho
O filho que se foi na faixa dos 30 anos
Teu Filho, Senhora
Tende piedade de nós, almas desamparadas
Que roçam a heresia por viverem muito
E tudo se reduz à essência do Espirito
Desça com suas linguas de fogo
Terceira pessoa que conduz a Eucaristia
Ficamos mais religiosos
À medida que o tempo avança
Sobe aos céus a Poesia
O POÇO
Teu coração agora é de pedra
A política sepultou o teu poema
No fundo desse poço o verso grita
Mas não se salva, sonho nas correntes
Nem viste teu punho cortando as asas
Achavas que a razão te segurava
Mas és apenas um peão, uma aldrava
Fechas a ilusão sobre o penhasco
Diga uma oração, quebre o que mata
Volte à poesia, mãe de toda água
Sagrada comunhão que te resgata
Deixe o crime sem tua vocação a segurar as pontas
Veja como fogem quando despertas
TERRA FOGO ÁGUA AR
A Terra é plena
Plena de mar
O mar é a Terra
Solta no ar
O ar é o poema
Fogo de estrela
XANGRILÁ
Tua beleza me adoece
Não possuo acesso à cura
O que sinto convalesce
Nas curvas de uma aventura
Mantenho perto as bagagens
Para subir a montanha
Até a estação das neves
Xangrilá das tuas trilhas
Enquanto percorro as pedras
A tempestade do clima
Que manténs com tua conduta
Se abate em meus domínios
Ligo para alguém, o destino
Para descobrir a armadilha
Em busca de uma esperança
Que devolva a minha vida
Desça que o tempo está feio
Me diz o deus que me expulsa
Ela pertence ao império
Dos compromissos divinos
Embaixo do mau Olimpo
Toco a lira e te cultivo
Quem sabe a flor que carrego
Não me seja devolvida
BONECO DE PALHA
Você diz perdoa mas não se arrepende
Diz que não está e se esconde
Sarça ardente, leão de bronze
És personagem, cavaleiro andante
Na companhia de saltimbancos
Cuidas dos guizos, boneco de palha
Tua acrobacia é a palavra
MIGRAÇÃO
Migrei para ter outra vida
E a mesma foi na bagagem
Fugi mas precisei voltar
Ficar foi minha ruína
Fora disso
Vivi feliz onde tua flor
encontrou abrigo
MARESIA
Não importa o que digo
Mas a música que eu produzo
Palavra é melodia
Composta pelo uso
O conteúdo é datado
Pode ir para o lixo
Já a canção fica
Nova a cada crepúsculo
Cante
Aprenda a sonhar
De ouvido
Leia o som deste violino
Toco para ti, maresia
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