Nei Duclós
MIOLO DO DRAMA
Poesia é a percepção da palavra
O seu uso
Ela mesmo importa menos
Você pode fazer um poema com palavras mortas
Desde que você veja. Você enxergue
A palavra em si não leva a nada
Evite dizer amor quando se apaixonar na cama
Diga adeus e sofra como um cão
O destino, a poesia, te levará de volta
Ao miolo do drama
DEIXA ESTAR
Perdi o bentevi pousado no fio
Fui fotografá-lo mas já era tarde
Perdi o registro da imagem
Mas não a palavra sobre ela
Não vou descrever a cena
Pois poderão dizer: não é o pássaro que estás pensando
É outro, de peito branco e a cabeça amarela e preta
Vai estudar as aves, é o que dirão
Não é bem te vi o que ele canta ou pia
Isso é sua percepção
Sua poesia
Mas agora estou de tocaia
Para provar que tenho razão
Ele há de pousar de novo, o salafrário
E posso garantir: não era gorrião sabiá ou canário
Nem pomba rola ou quero quero
Deixa estar
Tenho a manhã toda para provar
Não importa o vento frio da varanda
Tenho o sol e o céu azul
CIRCUITO
Há tempos sai do circuito
Agora curto
O problema é a faísca
O choque mudo
A energia vai toda para o sonho
Estive na rua sem jamais ter saído
O tempo é um papel que voa baixo
E às vezes levanta num pé de vento
NÃO PARECE
Poema é quando não parece poesia
Não tem o clima
Nao força o estilo
Também não é quando sai no bate pronto
Como este poema
Não é suor nem lágrima
É construído para não ser o que se espera
É quando ninguém recita
Guardado porque não publica
Então do que se trata
Se não rima nem tem verso livre
E fica oculto junto com a lenha?
É só poesia que não se identifica
Bilhete de falso suicida
Palavrão escrito na areia
Pixação depois que esquecem o conflito
Fica a parede com frases perdidas
Como greve dos jornais, minta você mesmo
Ou algo além do enigma
Escrito por anônimos
Como catavento não gera poder central
Mas isso não parece poesia!
É como eu ia dizendo
SUBMARINA
Digo por dizer
Se eu disser mesmo posso me arrepender
No fundo calamos para sobreviver
Só depois vem à tona a palavra tonta de dor
Submarina versão do que evitamos de pior
No fundo a alegria é um nado livre na superfície
Driblamos o olhar assassino do destino
Tocaia do azedume
Rio de mim para que flutue a liberdade do ser
DUPLA JORNADA
Mulher, matriz de criaturas
não se limita ao cânone obscuro
É igual ao que pensas ser só tua
A vocação da presença e da conduta
Dupla jornada, a de ser e abster-se
Para que seu fruto no tempo se abasteça
Parece fácil para quem em si concentra
Os princípios que não trazem diferença
A ilusão de fingir que nasce único
Mas vá fazer o que Deus não experimenta
Por ser homem à imagem e semelhança
Vinga-se o poema confinado
A celebrar o romantismo já enterrado
E o verso pelo ourives em minúcias
É a vez da esgrima sem firulas
Pois é cama de gato que ela apronta
Ao surpreender o mundo com sua grua
De lá somos filmados como bichos
Numa obra que é de corte e não costura
Bravo, caro Duclos! Abraços.
ResponderExcluirMuito obrigado, poeta!
ResponderExcluir