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31 de julho de 2019

CONDIÇÃO E OUTROS POEMAS


CONDIÇÃO

No fundo queremos companhia
Remorso por tanto tempo sozinho
Nascemos para nos projetar em luz e sombra
Acolher e ser acolhido

Chamam de amor essa emoção de arrimo
É a condição de abraçar o que evitamos
Sermos humanos

Nei Duclós

CHARADA

Para ti sou novo, me conheceste agora.
Mas não sou moço, tenho História

Para mim sou antigo, mas não me conheço
Quem sabe me dizes o que ignoro?

Nei Duclós

DENTRO E FORA

Não estou sorrindo
Mas isso não importa
Guardo o que não vês
Escondo o que sinto
E exibo a boca torta
De um rictus cevado pelo sofrimento

Mas estou contente
Com minhas provas
De que estou vivo na tormenta

Não estou chorando
Mas dentro medra a dor que não compartilho
Minha alegria é o espírito que me anima
A poesia

Nei Duclós


Não use nada
Só tua alma
Teu coração
Solitário
Tua porção
Do itinerário

Não pegue carona
No notório
Só tuas mãos
Vazias
Só teus dias
Nem mesmo
Tuas memórias

Enfrente o mar
Com teus braços
Finos
Teu peito de cão
Teu corpo tímido

Saia do chão
Com asas ainda úmidas
Presas na oficina

Só tens a poesia
Unico clarão

Nei Duclós


FÁBULA

Tirou-me a bala do peito
O cirurgião residente
Apostou que havia vida
No corpo já sem proveito

O coração se salvara
Por falta de pontaria
O gatilho obedecia
Ao tremor do assassino

Voltei à tona um dia
Depois desse desperdício
Quis a vingança do crime
Mas na hora me contive

Um anjo encarregado
Por Deus ou o seu pupilo
Para livrar-me do erro
Veio então falar comigo

Deixe a obra do destino
Diga sim à sua vontade
Disse a doce entidade
Com a voz de profecia

Tirou-me toda a maldade
Embora eu seja a vítima
Convivo agora com o tiro
Não permito que se espalhe

Nei Duclós

CENA

Na fresta do luar colhi a estrela
Que pousara seu corpo ainda quente
Na areia improvisada de uma praia

Eu era moço, feito de sistemas
Que permitiam viver sem ter acesso
À natureza íntima dos mistérios

Mas foi chegar na rústica morada
Que a onda construira sem alarde
Junto ao aglomerado de um rochedo
Depósito de astros em recesso

Para eu provar o bálsamo do enredo
A trama do convite a uma festa
Em que dancei patrocinado pela lua

Não faz sentido o gesto de Netuno
Que empurrou do mar uma sereia
Eu não estava a merecer aquele sonho

Ainda engatinhava no poema
Mas a cena me ensinou a transcendência

Nei Duclós

16 de julho de 2019

MIOLO DO DRAMA E OUTROS POEMAS


Nei Duclós

MIOLO DO DRAMA

Poesia é a percepção da palavra
O seu uso
Ela mesmo importa menos
Você pode fazer um poema com palavras mortas
Desde que você veja. Você enxergue

A palavra em si não leva a nada
Evite dizer amor quando se apaixonar na cama
Diga adeus e sofra como um cão
O destino, a poesia, te levará de volta
Ao miolo do drama



DEIXA ESTAR

Perdi o bentevi pousado no fio
Fui fotografá-lo mas já era tarde
Perdi o registro da imagem
Mas não a palavra sobre ela

Não vou descrever a cena
Pois poderão dizer: não é o pássaro que estás pensando
É outro, de peito branco e a cabeça amarela e preta
Vai estudar as aves, é o que dirão
Não é bem te vi o que ele canta ou pia
Isso é sua percepção
Sua poesia

Mas agora estou de tocaia
Para provar que tenho razão
Ele há de pousar de novo, o salafrário
E posso garantir: não era gorrião sabiá ou canário
Nem pomba rola ou quero quero
Deixa estar
Tenho a manhã toda para provar
Não importa o vento frio da varanda
Tenho o sol e o céu azul



CIRCUITO

Há tempos sai do circuito
Agora curto

O problema é a faísca
O choque mudo

A energia vai toda para o sonho
Estive na rua sem jamais ter saído

O tempo é um papel que voa baixo
E às vezes levanta num pé de vento



NÃO PARECE

Poema é quando não parece poesia
Não tem o clima
Nao força o estilo

Também não é quando sai no bate pronto
Como este poema
Não é suor nem lágrima

É construído para não ser o que se espera
É quando ninguém recita
Guardado porque não publica

Então do que se trata
Se não rima nem tem verso livre
E fica oculto junto com a lenha?

É só poesia que não se identifica
Bilhete de falso suicida
Palavrão escrito na areia
Pixação depois que esquecem o conflito

Fica a parede com frases perdidas
Como greve dos jornais, minta você mesmo
Ou algo além do enigma
Escrito por anônimos
Como catavento não gera poder central

Mas isso não parece poesia!
É como eu ia dizendo



SUBMARINA

Digo por dizer
Se eu disser mesmo posso me arrepender
No fundo calamos para sobreviver
Só depois vem à tona a palavra tonta de dor
Submarina versão do que evitamos de pior

No fundo a alegria é um nado livre na superfície
Driblamos o olhar assassino do destino
Tocaia do azedume

Rio de mim para que flutue a liberdade do ser



DUPLA JORNADA

Mulher, matriz de criaturas
não se limita ao cânone obscuro
É igual ao que pensas ser só tua
A vocação da presença e da conduta

Dupla jornada, a de ser e abster-se
Para que seu fruto no tempo se abasteça
Parece fácil para quem em si concentra
Os princípios que não trazem diferença
A ilusão de fingir que nasce único

Mas vá fazer o que Deus não experimenta
Por ser homem à imagem e semelhança

Vinga-se o poema confinado
A celebrar o romantismo já enterrado
E o verso pelo ourives em minúcias
É a vez da esgrima sem firulas

Pois é cama de gato que ela apronta
Ao surpreender o mundo com sua grua
De lá somos filmados como bichos
Numa obra que é de corte e não costura



7 de julho de 2019

DORSO DE LOUÇA E OUTROS POEMAS


Nei Duclós


DORSO DE LOUÇA

Não conteste o poema
Não porque seja fruto de certezas
Mas porque os anjos sopram
Suas sílabas sobre o vento

E as velas levantam em direção ao norte
Com o tempo fechado em todas as comportas

Deslize em seu dorso
Navio gigante que aporta numa louça
E consome a fome de perguntas



Se a política foi o motivo
Da ruptura depois do conflito
É porque não prestava o vínculo
Cultivado pelo sentimento

Dói assim mesmo, inconsequente

Não faço estardalhaço
Não chuto o balde
Nem digo que vou viver no anonimato

Não posso fugir
flor de cacto

Moro no sonho desfeito
no moinho abandonado

Tenho tantos livros
Um dia não estarão mais comigo
Farão parte do teu pão, teu abrigo
E nem lembrarás
que fiz sangrando

PASSAGEIRA

Você melhora a cada dia
Renova o sonho, fica na sua
Escreve ensaios e compartilha
Viaja ao Butão depois à India
Volta só para ver a família
Quer outro mundo e por ele briga

E eu?
Eu espero
De guarda chuva aberto o fim do inverno
Quando virás trazendo sementes
Que plantaremos em terras de conflito

Por enquanto leio tuas cartas
Passageira noturna




EUCARISTIA

Ficamos mais próximos de Deus conforme a idade avança
Não íntimos porque não existe espaço doméstico no paraíso
e ninguém toca a tunica da divindade para saber de que pano é feita

Ficamos como irmãos do Senhor a jogar dominó com os anjos
E imagino que ao chegar aos cem O trataremos como Filho

O filho que se foi na faixa dos 30 anos
Teu Filho, Senhora
Tende piedade de nós, almas desamparadas
Que roçam a heresia por viverem muito
E tudo se reduz à essência do Espirito

Desça com suas linguas de fogo
Terceira pessoa que conduz a Eucaristia
Ficamos mais religiosos
À medida que o tempo avança

Sobe aos céus a Poesia



O POÇO

Teu coração agora é de pedra
A política sepultou o teu poema
No fundo desse poço o verso grita
Mas não se salva, sonho nas correntes

Nem viste teu punho cortando as asas
Achavas que a razão te segurava
Mas és apenas um peão, uma aldrava
Fechas a ilusão sobre o penhasco

Diga uma oração, quebre o que mata
Volte à poesia, mãe de toda água
Sagrada comunhão que te resgata

Deixe o crime sem tua vocação a segurar as pontas
Veja como fogem quando despertas



TERRA FOGO ÁGUA AR

A Terra é plena
Plena de mar

O mar é a Terra
Solta no ar

O ar é o poema
Fogo de estrela



XANGRILÁ

Tua beleza me adoece
Não possuo acesso à cura
O que sinto convalesce
Nas curvas de uma aventura

Mantenho perto as bagagens
Para subir a montanha
Até a estação das neves
Xangrilá das tuas trilhas

Enquanto percorro as pedras
A tempestade do clima
Que manténs com tua conduta
Se abate em meus domínios

Ligo para alguém, o destino
Para descobrir a armadilha
Em busca de uma esperança
Que devolva a minha vida

Desça que o tempo está feio
Me diz o deus que me expulsa
Ela pertence ao império
Dos compromissos divinos

Embaixo do mau Olimpo
Toco a lira e te cultivo
Quem sabe a flor que carrego
Não me seja devolvida



BONECO DE PALHA

Você diz perdoa mas não se arrepende
Diz que não está e se esconde
Sarça ardente, leão de bronze
És personagem, cavaleiro andante
Na companhia de saltimbancos
Cuidas dos guizos, boneco de palha
Tua acrobacia é a palavra



MIGRAÇÃO

Migrei para ter outra vida
E a mesma foi na bagagem
Fugi mas precisei voltar
Ficar foi minha ruína

Fora disso
Vivi feliz onde tua flor
encontrou abrigo



MARESIA

Não importa o que digo
Mas a música que eu produzo
Palavra é melodia
Composta pelo uso

O conteúdo é datado
Pode ir para o lixo
Já a canção fica
Nova a cada crepúsculo

Cante
Aprenda a sonhar
De ouvido
Leia o som deste violino
Toco para ti, maresia