23 de dezembro de 2015

PERDI A PALAVRA



Nei Duclós

Perdi a palavra nas muitas moradas
gavetas de pinho, estantes de aço
cestas de vime, dispensas, cabaças,
embaixo de pedras, em caules ocos
esquecida no ônibus, no canto da sala
bancos de metrô, marias fumaça
na copa das árvores, na curva da praia
na ferrugem de anzol, em papel almaço
em pastas de plástico, arquivos mortos
no miolo de livros de leitura escassa
bibliotecas com mofo, ruínas de escolas
atrás do espelho junto ao ramo sagrado
enfiada no tênis, em bolsos no forro
no terno sem uso, em lãs do casaco

Perdi a palavra em natais passados
em festas e pileques sem memória
nas valsas confusas dos bailes de gala
em viagens de trem, colchões de mola
no grude dos corpos, espíritos tontos
embaixo da lâmpada, nos fornos de gás
em lixos abertos, em caixas sem tampa
em jornais de séculos sem importância
entre o sonho e o sobressalto, perdi
o que tinha de mais claro, a palavra
liberta do empenho e o compromisso
o mágico som do abracadabra, condão
que batiza o mundo e o renova no berço
flutuando no rio que banha a cidade


RETORNO - Imagem desta edição: eu em Paraty, anos atrás, foto de Ida Duclós

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