Nei Duclós
É como capítulos de um romance: a canção Como os nossos
pais, de Belchior, define o perfil de uma geração, a dele, a nossa, dentro da
tradição oral que acabou gerando as grandes epopeias. O trovador é um
catequista e um profeta, um lúcido arauto do que vê e sente, uma referência
para seus contemporâneos. Assume assim a
função original da poesia, que era contar uma longa história, épica, ou seja,
em que personagens se transformam ao longo da narrativa. Vamos aos capítulos:
CAPÍTULO 1: ANUNCIAÇÃO
Não quero lhe falar
Meu grande amor
Das coisas que aprendi
Nos discos
Quero lhe contar como eu vivi
E tudo o que aconteceu comigo
O trovador diz a que veio. Como um Quixote de formação erudita
(os discos aqui como atualização da cultura que era livresca) partiu para a
aventura, e ele é o Cervantes que escreve as memórias dessa trajetória. Avisa,
adverte que sua história é única, original, pois não está disponível na
indústria do espetáculo. Ele e sua memória são os fundamentos dessa história.
Assim pretende fisgar o ouvinte/leitor, com a isca de algo inédito e que talvez
se identifique com a experiência da plateia.
CAPÍTULO II: O DESPERTAR PARA A HISTÓRIA
Viver é melhor que sonhar
Eu sei que o amor
É uma coisa boa
Mas também sei
Que qualquer canto
É menor do que a vida
De qualquer pessoa
Em vez de imaginar sua literatura, o trovador cria a partir
do vivido, que tem mais carisma do que o sonho.
A arte é imensa mas não se compara à grandeza da vida real, fonte de
toda representação. E essa vida, maior do que a arte, é comum a todos. Não se
trata de algo especial no canto do trovador. Ele narra o que existe ao nosso
redor e dentro de nós. O que conta não está confinado à sua vivência, à sua
alma. Está também em nós.
CAPÍTULO III: DESTINO É ARMADILHA
Por isso cuidado, meu bem
Há perigo na esquina
Eles venceram e o sinal
Está fechado pra nós
Que somos jovens
Para abraçar seu irmão
E beijar sua menina na rua
É que se fez o seu braço
O seu lábio e a sua voz
Nascemos para o amor, mas somos surpreendidos pela guerra.
Desperdiçamos nossa vocação dian te da tirania vitoriosa, que impede o
crescimento. A geração do amor é vencida pela ditadura.
CAPÍTULO IV: PROFECIA
Você me pergunta
Pela minha paixão
Digo que estou encantada
Como uma nova invenção
Eu vou ficar nesta cidade
Não vou voltar pro sertão
Pois vejo vir vindo no vento
Cheiro de nova estação
Eu sinto tudo na ferida viva
Do meu coração
A aventura leva à esperança de superação. O desconhecido é a
passagem para um mundo novo, diverso da herança da repressão. O Mal vai passar,
graças ao Tempo, à tendência irreversível de mudança e à disposição de abraçar
o novo.
CAPITULO V: AMARGO BALANÇO
Já faz tempo
Eu vi você na rua
Cabelo ao vento
Gente jovem reunida
Na parede da memória
Essa lembrança
É o quadro que dói mais
Minha dor é perceber
Que apesar de termos
Feito tudo o que fizemos
Ainda somos os mesmos
E vivemos
Ainda somos os mesmos
E vivemos
Como os nossos pais
Nossos ídolos
Ainda são os mesmos
E as aparências
Não enganam não
Você diz que depois deles
Não apareceu mais ninguém
Você pode até dizer
Que eu tô por fora
Ou então
Que eu tô inventando
Mas é você
Que ama o passado
E que não vê
É você
Que ama o passado
E que não vê
Que o novo sempre vem
Estamos presos ao passado, apesar das promessas de mudança,
dos sinais explícitos da superação. Nós somos a âncora desse navio atolado no
cais. Cristalizamos hábitos, como fizeram as gerações passadas, apesar de
sermos tão imbuídos da nossa ideia de revolução. Em vez de nos transformar,
engessamos nossas descobertas e fomos atropelados pelo Tempo. Repetimos o erro
das gerações passadas, tão combatidas. Essa é talvez a bofetada mais estridente
desta grande canção..
CAPÍTULO VI: A LIÇÃO DO PASSADO
Hoje eu sei
Que quem me deu a ideia
De uma nova consciência
E juventude
Tá em casa
Guardado por Deus
Contando o vil metal
Minha dor é perceber
Que apesar de termos
Feito tudo, tudo
Tudo o que fizemos
Nós ainda somos
Os mesmos e vivemos
Ainda somos
Os mesmos e vivemos
Ainda somos
Os mesmos e vivemos
Como os nossos pais
O trovador não poupa sua ascendência e adverte a geração com
a lição deixada pelo passado: quem achou que mudava acabou sucumbindo. É
preciso descobrir essa realidade dura para abrir-se definitivamente para a
transformação, abandonando o que nos deixa atrasados para sempre.
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