12 de fevereiro de 2012

POESIA, DE CHANG-DONG LEE: A DOR DA VERDADE


Nei Duclós

Flor vermelha na poesia romântica é confundida com amor, mas representa a dor. Na obra-prima Poetry (2010), do sul-coreano Chang Dong Lee, é a pista para a busca da verdade, que não se sintoniza com o sentimentalismo derramado ou o cânone do belo na arte. Fazer um poema é fácil, diz o professor de literatura no curso do centro cultural do bairro, o difícil é ter o coração preparado para escrevê-lo.

A protagonista, interpretada pela excepcional atriz Jeong-hie Yun, não consegue, por mais que se esforce, ocultar a verdade. Vai em busca dela, saber exatamente tudo sobre o estupro sofrido por uma jovem na escola do neto, que participou do crime junto com outros seis marmanjinhos cretinos. Nada mais doloroso, nada mais atual, o ocultamento do terror e a face inocente que ele adquiro por meio do medo do suborno e da conivência.

O ritmo da narrativa, acusada de lenta pela idiotia reinante – é o fluxo do rio, que abre e fecha o filme. A correnteza leve da aldeia traz boiando o corpo da menina que se suicida depois de ter sido atacada por seis meses numa sala remota, o laboratório de ciências da escola. Órfã de pai, e com 16 anos, não é considerada bonita, mas tinha a fragilidade familiar ideal para sofrer a covardia dos brutos, todos filhos de pais criminosos, pois estes se reúnem para abafar o caso junto com a direção do colégio e comprando o silêncio da imprensa. Esse ritmo é o da senhora de 65 anos que cria o neto porque a mãe dele é omissa e vive em outra cidade e jamais vem ver o estrago que é seu rebento - o mais asqueroso personagem adolescente da história do cinema, um execrável come-dorme.

Estupro em escola é lugar comum hoje no mundo todo, assim como seu abafamento. A impunidade decorrente disso é absolutamente cavernosa. Uma escola acaba se souberem de um caso desses, pois entregar os filhos num estabelecimento de ensino implica credibilidade e confiança. Se no ambiente escolar existe um crime consentido por um tempo razoável, que resta de confiança para os pais e alunos? Com seu roteiro magistral premiado em Cannes em 2010, o cineasta nos leva pela mão pelos olhos da protagonista, que estava querendo realizar um sonho da adolescência, a de ser poeta.

Só que ela não consegue escrever o poema que o professor estimula. A poesia romântica não cabe na realidade onde vive. Ela toma nota do que vê e sente, observando a natureza, flores, folhas e frutos e paisagens, mas jamais chega ao resultado final. Só quando decide fazer justiça e entregar o neto para um policial honesto, participante de um clube de poesia, é que consegue finalmente. O poema encerra o filme. É o diálogo com a menina morta e serve para nos matar do coração. Sim, poesia é amor, sem tirar nem por. Amor pela verdade.

Por que não fazemos mais filmes assim? Porque perdemos a guerra, somos uma nação derrotada pela criminalidade. Não há saída nesta terra sem lei, onde os ministros, em série, são flagrados em falcatruas e uma greve policial justifica a matança industrial de desafetos. Não há respeito aos mais velhos (logo na nossa vez!) e o crime impera em todas as esquinas, atividades e hábitos. Como fazer filme decentes se somos contaminados pelo Mal? A não ser que possamos reagir e fazer como na Coréia do Sul, onde a resistência contra o esgarçamento social produz grandes obras como esta.

A poesia costura o roteiro, a justiça se faz pela individualidade resistente e a ferida aberta não fica impune. A mulher envolvida no abafamento do crime é uma espécie de Hamlet o tempo todo. Fica em dúvida se deve ou não denunciar o crime que atinge sua família. A maçã que observa ou o damasco que colhe do chão (pisado e pronto para ressuscitar de suas sementes) é a vítima que a desafia a buscar a verdade apesar da dor.

E a verdade liberta: a avó chama a filha, mãe do adolescente criminoso, que acaba assumindo a casa. E ela, a mulher de 65 anos que estava presa a uma situação familiar injusta, assume sua identidade perdida, a de poeta. Seus sintomas iniciais de Alzheimer são a metáfora do esquecimento doentio imposto pela sociedade à cidadania. Mas ela se esforça, se exercita e lembra. Eis sua vitória.

Filme antológico e obrigatório. Veja.


RETORNO - Imagem desta edição: Jeong-hie Yun em Poetry.

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