4 de setembro de 2011

KARTA KAÓTICA II, DE CAIO F. ABREU, COM CHAVE DE OURO



Nei Duclós

Publico aqui agora o resto da carta de Caio Fernando Abreu para mim escrita em maio de 1976 e que ele denominou de karta kaótica, como está no post anterior sobre o mesmo tema. Vemos Caio se insurgindo contra a mediocridade da vidinha pseudo-literária e descrevendo uma sucessão de personagens reais daquela época. Vamos à carta, que está ilustrada acima por cena do filme citado, Um dia de Cão (Dog Day Afternoon, de Sidney Lumet, 1975, com Al Pacino), e termina com uma debochada chave de ouro.

26/5

Dia cinza, frio, tão úmido que os papéis em cima da mesa amoleceram um pouco. Ontem fui ver “Um dia de cão” e gostei muitíssimo. É uma loucura total, incrível como o diretor consegue extrair humor daquela situação. Ri muito. E amei Al Pacino.

Você conhece Verinha-do-Proletariado? É minha amiga mais recente, estamos fazendo juntos uma matéria sobre psiquiatria para o “Movimento”. Ela trabalhou um tempo na Folhinha, é quase loira, tem um olho claro – e tão gozada, fuma horrores (Continental), usa uns sapatões mui masculinos, roupa amassada, desleixada, fala uns 10 palavrões por minuto – e mesmo assim não convence muito como marginal, você entende?

Minha gripe vai baixando aos poucos. Passei dois dias de cama, lendo coisas – ruins, à exceção de um conto da Ficção chamado “O Analista Marciano”. Chegou Escrita, li a crítica (é meio heckeriana, sim; fiquei me perguntando se, já que os caras apontam aquelas coisas no livro, não será verdade? pelo menos em parte...) e as cartas, que me divertiram muito. “Menino amuado” – amei!!! Puxa, aos 27 anos alguém me chamar de “menino” acho realmente maravilhoso. Rita Lee e Fernando Pessoa? Platão e Monteiro Lobato? Que loucura, não é? Sabe que minha cuca é uma colagem? Nunca fiz teste de QI, será que é realmente muito baixo? Ontem escrevi um continho – escondido, como quem comete um pecado.

Tenho um amigo novo chamado Rafael Baião, não é um nome perfeito? Elementos angelicais – israelitas e magrinhos... ”e que ficou desnorteado – como é comum no seu tempo/ e que ficou desapontado – como é comum no seu tempo/ e que ficou apaixonado e violento – como como você”. Rafael Baião escreve. Quem não escreve?

Junho vem chegando, já começou a gear – as laranjas e bergamotas estão um mel – agora, meu deus, será que conseguirei ultrapassar este agosto? O do ano passado foi fatalíssimo, lá pelo dia 10 eu achava que não ia agüentar mais – e agüentei ainda mais 20 dias. Não recebi nenhuma condecoração. Na Suécia quase 5% da população costuma se suicidar ou no último mês de inverno (por cansaço) ou no primeiro de primavera (por medo do verão).

Você não acha que o Sony do Dia de Cão era um grande cara? Ofereceu uma verdadeira festa pro povo, e tudo por amor, para pagar a operação de mudança de sexo de Leon.

Hoje à noite tem espetáculo. Ontem fui vender entradas na Filosofia. Fui de aula em aula, fiquei lá da uma às sete da noite. Vendi sabe quantas? TRÊS. E assim mesmo,pra gente conhecida, Glenda, Maria Augusta e Mossmann. Em volta a maior agitação, panfletos mis, papos incríveis (“dialética” continua sendo uma das palavras mais usadas...), eu me senti tão velho sentado naquela escrivaninha toda rebentada, usando uma garrafa vazia de pepsi-cola como cinzeiro, e sem conseguir acreditar em nada daquilo.

Outra noite bati papo com Tânia Faillace, foi ver o espetáculo “apesar de terem dito pra mim que era a apologia da magrinhagem”. O que significa magrinhagem? O mais engraçado é que a própria Tânia está com uns ares meio freaks, botas, cabelos presos até a altura das orelhas e depois muito crespos e enormes até os ombros. Ficou contando de como um choifer de taxi tentou RAPTAR o Daniel em, plena 24 de outubro, ás 6 da tarde, depois perguntou se eu estava fazendo psicoterapia porque me sentia mais paranóico ou mais esquizofrênico. Conheci em Estocolmo um brasileiro chamado Paulo não-sei-de-que, estava fora do Brasil há 5 anos, já tinha rodado toda a Europa, África, América do Norte e Central e dizia que isso aqui era uma TABA – na época fiquei meio ofendido, ainda tinha meus brios, ultimamente tenho lembrado dele.

O “Desescalado” é bastante bom – surprise! Sabe o que acho? Que tem escritores demais no país, eu ando me sentindo INTOXICADO de literatura – como é que fui entrar nessa? Quem sabe eu vou criar galinhas, qualquer coisa assim? Seria bem mais saudável. E esas plêmicas, esses pequenos escândalos todos me desgostam muito – acho tão VULGAR (soa meio aristocrático?), ando inclusive meio de pé-atrás coma “Escrita” – pode ser paranóia minha, mas me parece que há por trás daquilo uma jogada jornalística (no mau sentido), de fomentar (palavrinha gozada) escandolozinho , fofoquinhas, intrigas, - tudo muito provinciano, muito brasileiro (naquele sentido do brasileiro do Estocolmo), muito BURRO. O que está vindo á tona é uma imensa mediocridade, chacrinhas, grupelhos – duma bichice incrível.

Não sei, Nei, mas uma coisa que eu gosto muito – e que me torna cada vez mais difícil – é dignidade. Tudo isso me dá muito nojo, mas tem seu lado bom, é escola, é cabaré, de outras vezes não serei tão ingênuo nem tão sincero, não creio que valha a pena a gente se meter nesse tipo de coisa, nesse mundinho de vaidades feridas. “Não quero oferecer minha cara como Verônica nas revistas”. Falar em Drummond, almocei com Rosane Porto no domingo. Está linda, conseguiu internar-se no São Pedro, fica o dia inteiro sem fazer nada, com mil psiquiatras em volta – felicíssima. Incrível, não é? Acho que conseguiu uma boa solução, já que não conseguia mesmo adaptar-se aqui fora.

Acho que Ida e Daniel já devem estar aí. Um beijo para eles. Tô esperando que tudo dê certo para que eu possa ir em julho. Seria muito bom pra mim. Espero que o teu trabalho esteja legal, que você esteja contente. Se alguém perguntar por mim, diga que estou fazendo cursinho para o vestibular da Física, no IPV – é minha chave de ouro. Teu
Caio


RETORNO - Alguns esclarecimentos: 1. IPV é o Instituto Pré-Vestibular de Porto Alegre. Fazer IPV para Física é o máximo do deboche. 2. Há dois Daniel nesta carta, um nada tem a ver com outro. O Daniel do final é o meu filho. 3. Magrinhagem se refere aos magrinhos, como eram chamados os moços gaúchos daquela época e que se dedicavam à literatura, ao teatro, à arte, usavam cabelos compridos e não compactuavam com a hegemonia marxista. Era sinônimo de alienação, vagabundagem. 4. Movimento, Escrita, Ficção: imprensa alternativa a mil. 5. Continental era o forte cigarro sem filtro muito popular. 6. Heckeriano se refere ao escritor Paulo Hecker Filho, poeta e crítico super rigoroso.

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