27 de setembro de 2011

AINDA É CEDO


Nei Duclós

Ainda é cedo, amor, para retribuir teu beijo, porque devo esperar a hora certa. Um sinal será dado pelo navio que cruza o rio e fica em frente a nós como um aviso de que tudo poderá acontecer de novo, nossa cama coberta de sonho, a janela aberta para os pássaros. Não devemos pensar em mais nada, a não ser nos desvencilhar desse laço a que nos condenamos e nos impede de viver o que foi dito acima: o Tempo domesticado pelo sentimento ainda vivo, o sopro divino de uma tardia esperança. Sim, palavras bonitas que te lanço porque me resta a sedução do verbo, já que perdi a chance quando estive perto e agora distante inauguro a vontade de rever o que perdemos.

Dizem que nada disso vale e é preciso aquilo que sabemos e já foi experimentado em vão pelas carruagens de sempre. Elas passam, amor, enquanto nós ficamos na beira da rodovia em pânico, esse país quebrado em mil pedaços . Não é mais hora de queixas, pois anulamos a capacidade de ver melhor quando tínhamos na frente a verdade que não ousávamos pronunciar. Ficou tarde para levantarmos do campo, aberto em mil crisântemos. Mas como o sol esboça chegar e tudo fica quieto como na véspera da criação, posso esperar o melhor da vida nova que nos toma o coração que considerávamos morto.

Libero a palavra de seus encargos, visto-a com roupa de domingo para me recuperar do estrago. Tinhas um vestido que despetalei escondido naquela dobra de vento. E eu calçava botas de pano, que não faziam ruído quando inaugurávamos jardins colhendo a esmo flores que em pouco tempo morreriam. Inventamos essa doce compulsão de canteiros enquanto o mato tomava conta dos gerânios. Perdi a noção do que falo, pois apenas exerço a hipnose que te prende como o olhar do bicho de tocaia no pântano. A mágica ainda funciona? Me diga, amor, antes que eu suma outra vez no trem desse destino.

Na estação te vi ainda intacta com teu rosto vermelho de paixão pelo que cultivamos. E nos despedimos, como dois absurdos contratempos. Foi o trem bater no trilho da colina seguinte para eu saber que estava tudo perdido, apesar da promessa e teu bilhete, que guardo ainda. Arranjei até um cofre onde revisito quando chove e imagino que o tempo bom é uma idéia que pertence ao deserto que nos impuseram. Mas um cheiro teu cruza o infinito dessa distância insuportável e levanto para ver a manhã ainda no esboço de um clarão da iminente primavera. Sim, eu falava do inverno, meu amor, e de como ficamos enrijecidos e tontos e como nos recolhemos achando que iríamos sobreviver se nos encolhêssemos até além do limite da insânia.

Mas a chuva parou e as árvores se colocam em guarda como num dia de batalha que mede os adversários com o olhar de escândalo. Há mudez nos ninhos e rútilos girassóis estão prontos para lançar seu amarelo ouro sobre o verniz do dia ainda no esboço. Falo sempre da mesma coisa, amor, e direi sempre, toda a vida e mais a próxima encarnação, se isso existir de fato. Quero a mulher que me enche de mel como um oásis numa paisagem de metais e fogo.

Quero teu amor, e isso é tudo.


RETORNO - Crônica publicada no jornal Momento de Uruguaiana. 2. Imagem desta edição: foto de Anderson Petroceli, a poesia do olhar do fotógrafo maior da fronteira.

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