28 de agosto de 2011

MR. AUGUST: UMA CARTA DE CAIO FERNANDO ABREU


Nei Duclós

Decidi achar as cartas do Caio Fernando Abreu no meu arquivo (soterrado de papéis, acumulados em décadas) . Ele escrevia normalmente para mim nos anos 70,quando por um tempo fomos muito amigos e nos correspondemos, ele em Porto Alegre, eu em São Paulo. Biógrafos e estudiosos já me pediram essas cartas. Uma biógrafa chegou a duvidar da existência delas, já que eu não ofereço a aparência de um capital simbólico suficiente para convencer os deslumbrados. Mas por algum motivo não cedi.

Agora vou revisitar cada uma delas e aos poucos vou postando por aqui, sem obedecer a nenhuma cronologia. São todas cartas legítimas, originais, com a assinatura do amigo que já tinha grande prestígio na época e se transformou num escritor cult, numa celebridade nacional, queridíssimo por muitos milhares de leitores. Divulgo para o meu país conforme recebi: com o espírito desarmado e abraçado ao grande amor que os escritores do Brasil tem pela literatura que aqui se faz e aqui se paga com a vida.

Com vocês, o Caio que me escrevia e foi uma personalidade chegada, um amigo por algum tempo próximo, irmão das letras e generoso em sua amizade e talento. A primeira, que divulgo hoje , é do início de agosto de 1976. Foi escrita em papel pardo comum, a máquina e corrigida a caneta. Tem algumas frases antológicas, que poderão ser notadas ao longo do seu texto.



Porto, 2. 8. 76

Nei:

Nosso velho conhecido – Mr. August – chegou ontem, vestido a caráter: aquele velho terno cinza muito molhado, e tão velho que já tem algumas manchas de limo. Agora é preciso hospedá-lo por 29 dias. E resistir, já que ele insiste sempre em nos puxar para dentro e para baixo. Resistiremos.

Junto com ele veio também – graças! – um pouco de luz, acho que para contrabalançar: a Pifa, um pouco mais ruiva e muito mais bonita. Deu notícias de você, da Ida, Daniel e Juliana (as mãos de Juliana já estão famosas aqui no Sul, dizem que são longuíssimas, expressivas, espirituais). Eu tinha recebido os teus BIC de pena (lindos) e a notícia do nascimento dela, fazia algum tempo. Devia ter respondido, mas a barra andou pesando, tremores de terra internos e também bodes de fora – mortes, doenças na família (avôs, avós, tias – essas coisas).

Agora estou recomeçando/refazendo. Batalho emprego COM vontade de achar y me vuelve a la universidad, dia 9. Independência ou morte é a ordem do dia. Tenho escrito bastante, umas coisas muito cruéis, às vezes até meio porcas, genetianas. Por aí você pode supor o estado da cuca. Mas tudo bem: botar o horror pra fora é um dos jeitos de não deixar que ele nos esmague.

Estou mandando procê o recorte duma entrevista com o Mário Quintana, saída no Caderno de Sábado, e onde você – glória!- pinta como um dos poetas preferidos dele. Congratulations efusivas! Acho que é o maior elogio que você já recebeu em toda a sua vida. Confesso, fiquei com inveja. Tá saindo um novo livro dele – “Apontamentos de História Sobrenatural”. Um dos poemas que mais me fez a cabeça é este aqui:

O MORITURO (Mario Quintana)

“Por que é que assim, com suas caras imóveis e simiescas,/ os vivos nos devassam num cínico impudor?/ Por que nos olham assim – como se fôssemos cousas -/ quando os nossos traços vão repousando, enfim,/ na tranqüila dignidade da morte?//Por que é que eles, com a sua obscena curiosidade,/ não respeitam o até mais íntimo da nossa vida/ - ato que deveria ser testemunhado apenas pelos Anjos?// Ah, que Deus me guarde na hora da minha morte, amén, / que Deus me guarde da humilhação deste espetáculo/ e me livre de todos, de todos eles:// não quero os seus olhos pousando como moscas na minha cara./ Quero morrer na selva de algum país distante.../Quero morrer sozinho como um bicho!”

Sinto saudade de ti. Sinto falta. Os amigos estão raros, distantes, esquivos. Não deu para viajar em julho, talvez no fim do ano, ou de repente, sempre pode ser.

Que teus três companheiros estejam bem. Um beijo para eles. Até a outra.
Teu
Caio



RETORNO - Foi assim, naquele distante agosto, que Caio me falou de suas leituras, seus planos, seu trabalho, suas faltas e me informou sobre o elogio do Quintana para o poeta estreante. E se despediu beijando as três pessoas da minha família, mulher e um casal de filhos (o terceiro veio dois anos mais tarde). Deus guarde Caio, que entre nós cultivou a amizade sincera e a proximidade solidária e calorosa.

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