23 de agosto de 2011

AS RUÍNAS DO DISCURSO


Nei Duclós

Sobre o livro “Um copo de cólera”, de Raduan Nassar

A oposição fundamental que existe neste pequeno texto de Raduan Nassar não é entre um homem (desiludido e de meia idade) e uma mulher ( jornalista e liberada) È, antes, um duelo entre a linguagem e o discurso, entre o corpo e a cólera. São dois elementos que, aparentemente feitos da mesma matéria-prima, possuem rituais diferentes e evoluem em espaços desiguais.

O corpo ( a linguagem) é a redenção permanente, o desdobramento do prazer através da proximidade, do detalhe oculto numa vitrine de formas. A cólera ( o discurso) cabe num copo: sua arma é a transparência e o seu desespero é a própria limitação. Transbordar significa também apagar-se: por isso, a desproporção entre os inimigos define o desenlace. Para o escritor, a vitória da linguagem sobre o discurso é o único desfecho insubstituível. Pois vencer é cumprir o destino, é redefinir o drama, é render-se ao mito.

Uma rendição honrada que consegue também subverter a ideologia da guerra: as frases não são enxutas nem curtas, são úmidas e enormes; a palavra, mais do que um signo, é a mão, um braço; a pontuação não funciona apenas como recurso, são feridas abertas; os capítulos não compõem um jogo, não brincam de roda, nem obedecem aos caprichos da leitura: ao contrário, assumem um caminhar, criam a carne.

O casal criado por Raduan Nassar encarna a complexidade dessa trama múltipla, onde o texto, única realidade, procura a transfusão salvadora. Abre pacientemente as veias, irriga o território, modela as curvas, incendeia o sexo. Nada resta mesmo para o escritor, explorado e nu em seus segredos, do que insistir no sagrado, manobrar o silêncio, conviver com a dissonância, extrair o sopro.

O escritor sabe que a linguagem, para sobreviver à pulverização, ao ataque do discurso, recolheu-se às fontes e espera. Contrair suas águas, penetrá-la com a degradação da cólera, é provocar o debate. Seguindo no mesmo ritmo: é preciso substituir a mímica pela química, a ciência pelo feitiço, a emoção pelo esporro, o coração pelo toque.

Só assim é possível entender o abismo do casal de Raduan Nassar, separado pela linguagem em ruínas - o discurso -, mas unido pelas verdades do corpo. A narração - pólvora seca - acende o estopim: a cólera toma a maior parte do tempo, mas a carne encontra o seu caminho ao transbordar sobre si mesma. Ela assim define o forma, selecionada do escombro. Aqui, nenhuma rendição. Apenas o ofício de escrever e seu espólio: o livro, em plena forma; e o escritor, seu translúcido operário.

RETORNO - Publicado na revista SENHOR, em 17 de outubro de 1984.

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