26 de março de 2011

HATARI!, A NARRATIVA DE CRISTAL


Nei Duclós

A estrutura narrativa de Hatari!, de Howard Hawks, pode ser comparada a um cristal dividido em gomos luminosos, que confluem para o mesmo ponto. Cada gomo é um capítulo da aventura narrada e o ponto comum (e final) é o amor que se concretiza entre seres desenraizados.

As palavras não trazem o filme de volta, nem fazem justiça ao que ele é (a obra como foi concebida e realizada). Podemos apenas lembrá-lo com nosso verbo escasso, depois de vê-lo, sem cansar, mais de um milhão de vezes. A captura de animais selvagens na África é uma frase que nada diz sobre Hatari! É algo diverso. É a composição musical de uma saga, em que o alvo (o animal que precisa ser agarrado para o zoológico) impõe o ritmo e o perfil da narrativa. Assim, o filme torna-se veloz quando os caçadores tentam pegar o felino, perigoso quando o jipe provoca o rinoceronte, cômico quando se trata de enredar dezenas de macacos com a ajuda de um especialista em fogos de artifício (Red Buttons, como Pockets, antológico).

Cada captura (o gomo do cristal) é um primor de estratégia. E as relações humanas (um grupo de homens que vê-se surpreendido pela fotógrafa vinda de longe) rolam num acúmulo permanente de algo que não tem lugar naquele safári, os sentimentos (há apenas camaradagem, inevitável quando qualquer grupo enfrenta o perigo).

O amor se manifesta sem ser convocado e usa a chantagem para se consumar. A seqüência final, em que todos os animais se soltam, pode ser vista como a representação dessa manada de emoções guardadas dentro dos personagens, que diante da perda desandam como avalanche.

Mas o mestre não deixa que esses fios soltos temporariamente arruínem a perfeição da narrativa ao longo de 160 minutos. É preciso que tudo fique amarrado e isso se faz contra a vontade do personagem encarnado por John Wayne. Ele precisa assumir o amor, apesar de querer continuar com a mulher (a atriz Elsa Martinelli) sem dar bandeira dos sentimentos. O filme então define o papel de cada um: o casal, que ocupa o centro, e os coadjuvantes, os que ajudaram a buscar na savana a emoção selvagem que era para ser guardada como relíquia. O amor não cabe numa jaula e é preciso ceder para que ele ocupe seu espaço.

Homens turrões como Hawks sempre foram sentimentais. Mas nunca deram bandeira. São espécimes extintos, como o primoroso cinema que inventaram.

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