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28 de fevereiro de 2010
A AMÉRICA DEVORA O MUNDO
O Chile descamba com o terremoto, mas qual foi a grande notícia? As ondas gigantes que iriam atingir o Havaí. Não aconteceu nada, desmascarando assim o discurso de Obama, uma das muitas personalidades fake que representam o poder do mundo. O poder não está neles – de Sarkozy a Kirchner – mas eles são fantoches que se prestam a uma representação perigosa. Obama encarna a vontade e necessidade de mudança que, como definiu Lampedusa, acaba fortalecendo o Mesmo - as coisas precisam mudar para tudo continuar como está.
Quando Obama torce a cabeça para o lado, num cacoete de campanha que acabou fazendo parte de sua natureza, é para parecer incisivo e ao mesmo tempo mostrar seu perfil de estadista. Nunca me enganou. Continua matando muito no Oriente Médio. O que ele quis provar com seu espetáculo pirotécnico em que todas as câmaras do mundo ficaram apontadas para o Havaí enquanto o Chile se partia em mil pedaços? O que importa é a América, não o que eles chamam de Resto do Mundo. Eles são o parâmetro de tudo, mesmo que aparentemente as coisas tenham mudado.
A propósito, vi Crossing Over, do sulafricano naturalizado americano Wayne Kramer, com o politicamente correto Harrison Ford à frente de grande elenco (Ashley Judd e Jim Sturgess, o ótimo Jude de Across the universe, entre outros, como Ray Liotta e Alice Braga). Como sou monoglota, achei que crossing over queria dizer passando por cima, uma referência ao cruzamento da fronteira. Deve ser isso mesmo. Mas vencendo a preguiça (coisa que os críticos que abordaram o filme não fizeram) descobri o óbvio: esse é o nome de uma recombinação genética, “a troca aleatória de material genético durante a meiose”, segundo a wikipédia. Uma solução da natureza em que cromossomas homólogos (mas não irmãos!) resolvem discutir a relação e daí sai uma realidade genética diferente.
A genética é a ciência fundamental da América. A nação wasp (caucasiana) foi incorporando as outras raças, como asiáticos, hispânicos, afros. Mas manteve a diferenciação. Como os cavalos árabes, as pessoas lá são definidas pela sua raça, um conceito já desmoralizado pela ciência em se tratando de gênero humano. O cinema acompanha esse processo. Quando Clint East Wood faz Gran Torino, descobrimos que a América tradicional está morrendo e que a única saída é encontrar identificações mútuas para que a nação, recombinada, continue. Esse é o sinal do carro que é símbolo da América ser herdado pelo coreano baixinho imigrante.
A América de Clint se sacrifica para que a honradez, a honestidade e a esperança prevaleçam sobre o crime e o esgarçamento do tecido social. O velho rabugento continua firme na sua e enfrenta o mal com suas armas conhecidas (que ficam guardadas dentro de casa e são usadas quando necessário). O ex-combatente leva para as ruas a camaradagem de guerra para enfrentar a sacanagem das gangs aplicadas na destruição da América que os acolheu.
Em Crossing Over acontece o contrário. Não se trata de uma retirada de cena para dar espaço para uma nação refeita em outros termos. Mas de uma voragem explícica de todas as outras raças e nações (os “buracos de Terceiro Mundo”, como diz a advogada interpretada por Ashley Judd). A América, nesse caso, devora o mundo e não se adapta ao que a pressiona via imigração. A repressão da era Bush continua em vigor, basta ver que o senado americano acaba de dar sobrevida ao Patriotic Act, a lei que dá plenos poderes à pressão contra a cidadania suspeita de terrorismo. No filme, é representada pela agente do FBI que não cede nada para a advogada dita esclarecida e que não consegue impedir a destruição de uma família “asiática”.
As blitze violentas contra os imigrantes ilegais continuam com a mesma brutalidade e o Harrison Ford faz o trabalho sujo de sugerir de que existe no ventre do monstro alguma humanidade. O funcionário da imigração que prostitui a australiana em troca do green card e o assassino árabe da própria irmã vão para a cadeia. Ou seja, dá tudo certo no final e os vários vetores genéticos que desaguaram na América são selecionados pelos princípios imutáveis da nação imperial, que assim ganha diversidade, mas jamais se transforma.
Gran Torino é a despedida da América e a sobrevivência de princípios universais, como a tolerância e o convívio entre desiguais, a paz na diferença. Crossing Over é a reafirmação da América repressora, que continua selecionando geneticamente os imigrantes para, numa recombinação, manter intacta sua capacidade de devorar o mundo. É de notar que o filme errado é obra de um imigrante, e o certo é de um americano turrão. Assim são as coisas: nada é o que parece e nem devemos nos entregar às evidências.
RETORNO - 1. Imagem desta edição: Harrison Ford e elenco de Crossing Over. 2. Nem queria comentar porque o assunto fede, mas vocês viram o Tarantino baixando as calças para os chefões de Hollywood, feliz da vida diante dos "membros" do poder da indústria por ser agora um cara aceito e não mais um outsider? Bem que eu avisei. O enganador é desmascarado e deixa na mão sua legião de fãs, que acham sua obra o fino da transgressão.
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