24 de abril de 2009

PODER, CORAGEM E PERDÃO EM CLINT EASTWOOD


Nei Duclós

Clint Eastwood vem sempre em dose dupla, às vezes batendo uma no cravo, o cinema de autor - como o já comentado aqui Gran Torino - e outra na ferradura, a megaprodução de estúdio, como Changeling (A Troca), de 2008 e lançado no Brasil no início deste ano. O bem sucedido Ron Howard quase filmou este drama sobre o desaparecimento do filho de nove anos de uma mãe solteira, que trabalha na companhia telefônica, interpretada por Angelina Jolie. Nas duas faces da mesma moeda, Clint não abre mão de seus temas recorrentes: poder, coragem e perdão.

O poder é o das armas, das instituições, da corrupção oficial, representado em A Troca pela polícia de Los Angeles, que dispõe de esquadrão da morte e, para se safar diante da imprensa, substitui a criança perdida por um impostor. O poder normalmente está desvirtuado das suas funções e os filmes de Clint servem para recolocar as coisas no lugar. São obras de denúncia sobre a perversidade de quem manda a cidadania para o matadouro e entrega os inocentes para a máquina de culpa e perseguição instaurada como defensora dos direitos dos inocentes.

A coragem é o do pastor que denuncia os crimes oficiais, interpretado por John Malkovitch, felizmente livre de seus maneirismos, fruto de sua certeza de que é um grande ator (é, mas se estraga alimentando a megalomania). Ver um filme com Malkovitch sem que ele faça aquela boquinha esperta e túmida de muxoxo cheio de nojo-de-nós é um privilégio. Talvez tenha levado um tranco de Clint.

A coragem é também o da mãe desesperada, do detetive que vai fundo na investigação, das pessoas do entorno dispostas a testemunhar, das prisioneiras que enfrentam a brutalidade do hospício. A coragem existe em rede e migra do indivíduo para a comunidade, do profissional para o fórum. Ela se manifesta no garoto que volta para libertar o companheiro da armadilha onde foram encarcerados, da mulher que enfrenta o psicopata na véspera da execução, da ex-prostituta que peita os enfermeiros para defender alguém de uma injustiça.

O perdão é o desafio de Clint. Em Gran Torino, o ex-herói da Coréia só confessa os pecados considerados graves pelo puritanismo americano, como um lance de sonegação de imposto ou um gesto de traição à esposa. Os protagonistas dos filmes de Clint jamais pedem perdão pelos crimes cometidos em nome da nação ou da justiça. Sofre com o peso da culpa, mas não acredita no perdão. Em A troca há inclusive um deboche contra o perdão religioso, quando o réu diz que está se comportando bem depois de ser apanhado e de ter matado vinte meninos.

Um crime hediondo jamais será perdoado, esteja ele do lado que estiver, da nação ou do bandido. O herói americano não conhece o perdão católico que lava a culpa e deixa livre os criminosos para repetir seus erros. Não perdoar, em Clint, é manter acesa a vigilância contra a covardia, é não esquecer. Se a memória carrega a vida com seus fantasmas, também pode gerar esperança. É a lembrança física do garoto que sumiu que mantém alerta a mãe que jamais desistiu de procurá-lo. “Ele pode estar em algum lugar, escondido, com medo de se apresentar”, diz a personagem Christine Collins, construída por uma, à primeira vista, irreconhecível Angelina Jolie (que está bem a maior parte do tempo, só escorrega quando exibe sorrisinhos de vitória ou não sabe direito o que fazer com tantos lábios carnudos em meio a tanto sofrimento).

Para que haja esperança, é preciso que o poder esteja sob o tacão da Justiça. Só assim a coragem tem condições de se manifestar e obter algum resultado. Desde que não esqueça, ou seja, não perdoe e permaneça fiel à dor provocada pela perda. Clint não brinca em serviço, não está no mundo a passeio. Faz cinema, e faz bastante. Para alívio e alegria dos espectadores.

O filme, "uma história real", segundo Clint, foi escrito por J. Michael Straczynski (jornalista que redescobriu o caso na véspera de uma grande queima de arquivos), e financiado pela Imagine Entertainment e a Malpaso Productions através da Universal Studios. No elenco, destacam-se Jeffrey Donovan (o abominável policial de Los Angeles), Gattlin Griffith (o garoto sumido), Michael Kelly ( o detetive Lester Ybarra) e Colm Feore (o Chefe James E. Davis).

RETORNO - Imagem de hoje: o abominável Jeffrey Donovan apresenta o garoto impostor para a desesperada Angelina Jolie.


BATE O BUMBO: CITAÇÃO NA UFSC

Meu prefácio para "Cartas a um jovem poeta", de Rilke, publicado pela Editora Globo em 2003, foi citado no trabalho do professor Jair Zandoná "De Orpheu ao Hades: itinerário bio/gráfico em Mario de Sá-Carneiro", da Universidade Federal de Santa Catarina. É uma dissertação apresentada como requisito à obtenção de grau de mestre em literatura para o Curso de Pós Graduação em Literatura do Centro de Comunicação e Expressão da UFSC. A orientadora é a Professora Doutora Simone Pereira Schimidt.

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