Nei Duclós (*)
Vivemos numa era de transparências e descobrimos que tudo é inventado. Começa pelo nome, que empresta realidade a criaturas nascidas no zero absoluto. Há uma convicção de que somos evoluídos por apertar botões e superar os Jetsons, aquelas personagens futuristas que pertencem ao passado. Mas temos de aprender tudo, principalmente a conviver com os contemporâneos.
É fácil insurgir-se contra o Estado, patrões, colegas. É mole emocionar-se com músicas, livros, quadros. É tranqüilo manter amizades. É duro, mas gratificante, criar filhos e obedecer aos pais. O que não parece humano é ter argumentos adequados para chegar perto do entendimento numa relação amorosa. Não por haver diferenças, pois o que existe no mundo é desigualdade. Mas porque, por motivos misteriosos, nunca se chega ao ponto. Nesse ringue, quando mais se precisa das palavras, mais elas nos faltam. Ou, se são usadas no excesso, apenas confirmam a intensidade do enigma.
É preciso contrariar a velha percepção de que tudo se resolve na cama. Os lençóis não definem o debate das relações. Podem ser decisivos para manter o namoro, noivado, casamento, mas não para a conversa a dois, que para ter conseqüência merece ambiente menos comprometido. Como estamos num tempo em que sensações, cheiros, sentimentos, idéias viraram mercadoria, resta muito pouco para que o amor verdadeiro passe a limpo uma sintonia que é a base da vida adulta.
Apesar de estarmos completamente contaminados pelo mercado, há um nicho que resiste, o da razão. Pois o que temos exposto na vitrine das modernidades não é o exercício racional, mas sua negação. Quando autores, políticos, artistas saem a campo para defender o que pensam, estão no fundo tomando partido, se engajando em gavetas usadas estrategicamente por toda espécie de poder. É difícil encontrar espíritos livres, pelos menos publicamente. Na intimidade, a liberdade das almas se manifesta quando se discute a relação.
Não abordo aqui a briga pelos bens. Apenas me refiro à construção verbal de uma lógica que abarque o oceano, aquele dedal que carrega em vão gotas do mar para um lugar seco, como ensinava uma velha parábola. É o embate de mentes momentaneamente jogadas fora da arena global, já que a crise não existe na publicidade, e é tratada, na literatura de auto-ajuda, como insumo para a debilidade mental.
Espíritos livres, de pessoas adultas que se amam, isolam o tempo para conversar sobre o desgaste do amor que parecia tão profundo. Quando um produto cultural chega perto dessa situação, convencendo as pessoas de que está revelando algo real, há o estouro. Os best-sellers são a matéria-prima de mais uma ilusão, como se livro ou filme pudessem lançar luzes sobre esse momento limite, em que não dispomos do script elaborado e contamos apenas com o uso elementar do verbo escasso, enquanto se derrama sobre nós a avalanche das coisas irreversíveis.
O casal que resolve fazer o balanço do casamento, namoro, noivado, é como duas pessoas que se encontram no abismo, trafegando em direção contrária. Alguém toca nas nuvens, outro mergulha fundo. Ou ambos sobem, quando desistem de entender e decidem continuar. Ou caem, mas cada um para um lado. As estatísticas tendem a mostrar a queda, mas isso pode ser mais uma evidência inventada. Já que tudo não passa de ficção, temos o direito de consagrar ao amor o que nos resta de realidade.
RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 19 de fevereiro de 2008, no caderno Variedades do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: Bogart e Bergman em Casablanca, na cena mais dilacerada da história do cinema.
Vivemos numa era de transparências e descobrimos que tudo é inventado. Começa pelo nome, que empresta realidade a criaturas nascidas no zero absoluto. Há uma convicção de que somos evoluídos por apertar botões e superar os Jetsons, aquelas personagens futuristas que pertencem ao passado. Mas temos de aprender tudo, principalmente a conviver com os contemporâneos.
É fácil insurgir-se contra o Estado, patrões, colegas. É mole emocionar-se com músicas, livros, quadros. É tranqüilo manter amizades. É duro, mas gratificante, criar filhos e obedecer aos pais. O que não parece humano é ter argumentos adequados para chegar perto do entendimento numa relação amorosa. Não por haver diferenças, pois o que existe no mundo é desigualdade. Mas porque, por motivos misteriosos, nunca se chega ao ponto. Nesse ringue, quando mais se precisa das palavras, mais elas nos faltam. Ou, se são usadas no excesso, apenas confirmam a intensidade do enigma.
É preciso contrariar a velha percepção de que tudo se resolve na cama. Os lençóis não definem o debate das relações. Podem ser decisivos para manter o namoro, noivado, casamento, mas não para a conversa a dois, que para ter conseqüência merece ambiente menos comprometido. Como estamos num tempo em que sensações, cheiros, sentimentos, idéias viraram mercadoria, resta muito pouco para que o amor verdadeiro passe a limpo uma sintonia que é a base da vida adulta.
Apesar de estarmos completamente contaminados pelo mercado, há um nicho que resiste, o da razão. Pois o que temos exposto na vitrine das modernidades não é o exercício racional, mas sua negação. Quando autores, políticos, artistas saem a campo para defender o que pensam, estão no fundo tomando partido, se engajando em gavetas usadas estrategicamente por toda espécie de poder. É difícil encontrar espíritos livres, pelos menos publicamente. Na intimidade, a liberdade das almas se manifesta quando se discute a relação.
Não abordo aqui a briga pelos bens. Apenas me refiro à construção verbal de uma lógica que abarque o oceano, aquele dedal que carrega em vão gotas do mar para um lugar seco, como ensinava uma velha parábola. É o embate de mentes momentaneamente jogadas fora da arena global, já que a crise não existe na publicidade, e é tratada, na literatura de auto-ajuda, como insumo para a debilidade mental.
Espíritos livres, de pessoas adultas que se amam, isolam o tempo para conversar sobre o desgaste do amor que parecia tão profundo. Quando um produto cultural chega perto dessa situação, convencendo as pessoas de que está revelando algo real, há o estouro. Os best-sellers são a matéria-prima de mais uma ilusão, como se livro ou filme pudessem lançar luzes sobre esse momento limite, em que não dispomos do script elaborado e contamos apenas com o uso elementar do verbo escasso, enquanto se derrama sobre nós a avalanche das coisas irreversíveis.
O casal que resolve fazer o balanço do casamento, namoro, noivado, é como duas pessoas que se encontram no abismo, trafegando em direção contrária. Alguém toca nas nuvens, outro mergulha fundo. Ou ambos sobem, quando desistem de entender e decidem continuar. Ou caem, mas cada um para um lado. As estatísticas tendem a mostrar a queda, mas isso pode ser mais uma evidência inventada. Já que tudo não passa de ficção, temos o direito de consagrar ao amor o que nos resta de realidade.
RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 19 de fevereiro de 2008, no caderno Variedades do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: Bogart e Bergman em Casablanca, na cena mais dilacerada da história do cinema.
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