1 de maio de 2007

A CIDADANIA INVIÁVEL


O noticiário passa como paisagem pela janela do trem. Há mais de dois mil foragidos da justiça em Santa Catarina, sendo que quase 900 fugiram das celas, o resto nem foi capturado. Policiais encontram irmã de criminoso e a levam para uma sala de tortura. Colocam um capuz e começam a sessão. A garota estava grávida e teve corrimento. Supermercado que foi incendiado não tinha alvará dos bombeiros nem habite-se. Direção do supermercado disse que ficou surpresa, pois o serviço era terceirizado e garantiram que estava tudo em ordem.

Rapaz tranqüilo que entrou armado com um revólver e ateou fogo na seção de limpeza estava passando, dizem, por séria crise, pessoal e profissional. O ambiente (um sub-emprego numa vida com poucas perspectivas, aliado a um comportamento que exigia um tratamento à altura) encontrou a fagulha: uma desilusão no amor, uma acusação injusta no trabalho, uma remuneração distorcida. O resultado é a explosão num local que não tinha saída para incêndio (ou se tinha estava fechada a cadeado). A escada dos bombeiros não alcançavam dez metros de altura. As pessoas se atiraram, quebrando pé, tornozelo, perna, para não morrer.

Tudo isso perto de casa, na cidade, no estado. A linguagem em ruínas levam ao impasse. Se não há inteligência, investigação, recursos para o trabalho policial, se há descaso no salário, nas condições de emprego, se não há auditoria suficiente, então haverá tortura. É mais fácil extrair de alguém o paradeiro de quem deveria estar na cadeia do que investigar de verdade. A falta de um documento que permitisse o funcionamento do supermercado desaguou na intensificação da tragédia. A leitura dos eventos diários, da sociedade onde vivemos, foi substituída pela barbárie. Adolescente (16 anos) discute com outro e acaba dando três pauladas na nuca do adversário. A vítima morreu e o algoz foi recolhido a uma instituição de menores. Não há o hábito e a capacidade de resolver as diferenças por meio da linguagem, da carne das palavras.

O discurso, que é a decomposição da linguagem, se impõe. Começa pela arenga política, a justificação injustificável, a falta de responsabilidade nas alocuções, nos documentos que contrariam a realidade. Passa pela mídia, especialmente a publicidade, que estimula a violência, o desprezo pelo outro, a velocidade suicida dos automóveis. As novelas reiteram os papéis sociais da escravatura. O noticiário fica discutindo se o álcool deve ser líquido ou viscoso para evitar o pior.

A cidadania torna-se ínviável quando não há interlocução, quando duas pessoas não falam a mesma linguagem. A ruptura é o expediente mais comum, fonte de crimes. Não pode haver diálogo de verdade (substituído pelo monólogo entre surdos ou a clonagem do puxa-saquismo) quando o sistema precisa da corrupção para se manter. O Judiciário, que é a linguagem com força de lei, entra na dança das acusações e escandaliza a nação já escaldada. Não há paciência para a leitura concentrada, diária, conseqüente e sua necessária sintonia com as pessoas ao redor, com as autoridades. Como poderei reivindicar algo se não sei expressar direito o que vejo e sinto? E se sei escrever e dizer com todas as letras, meu texto não será lido pelo destinatário, ou se lido, ignorado. Não há cidadania se não houver uma civilização da linguagem.


As palavras foram distorcidas. Empresário virou publisher. Editor virou gestor de conteúdo. Empregado virou colaborador. Freguês virou cliente. Ditadura virou democracia. É por meio do discurso, a linguagem destruída, que o poder se manifesta e se impõe tanto no imaginário quanto fisicamente. As palavras possuem algemas. Imobilizados, damos aquele grito mudo de Al Pacino no terceiro Godfather. A ópera encontra seu desfecho: o mutismo desesperado.


Só nos resta a poesia, água no incêncio sem limites, fogo no canavial da indiferença. A palavra feito pão, carne, redenção. As palavras nascem no coração, chão de sementes.


RETORNO - Imagem de hoje: foto da série Meninos da República, de Marcelo Min.
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