10 de abril de 2007

O PARECISTA DA ALDEIA


Nei Duclós

Aos 16 anos, Magdo levou uma resma de papel almaço escrita em caligrafia caprichada para seu primo dar um parecer. O primo Louis, que virava a língua quando dizia o próprio nome, de origem nobre, dizia ele, era um especialista em destruir carreiras literárias. Tinha evitado o desenvolvimento precoce de uma chusma de aspirantes que o convocavam para opinar sobre a tosca literatura cometida por eles. “Lôuis” era inimigo do Padre Marcílio, incentivador de talentos e fomentador de desastres da poesia e da ficção.

Para começar, o parecista oficial da aldeia avisava que não emitia opinião sobre versinhos. Isso era coisa de retardados, dizia ele. Empilhar palavrinhas que se acenavam por rimas e consonâncias era um hábito feio que tinha tomado conta da humanidade sem luzes a partir do século 19. São duzentos anos de perda de tempo, dizia ele.

Restava aos pimpolhos que insistiam em passar pelo buraco da agulha do herege a sofreguidão de tentar chegar à glória. Pois, tamanha era a fama do pseudo francês beletrista que, se ele por acaso aprovasse algo, haveria reconhecimento e todos os leitores que restavam teriam de sucumbir à ingerência do Mestre. Mas sabiam: nada de poemas. O teste deveria ser feito por meio de texto muito prosa, muito metido. Era preciso impressionar o leitor número um e nisso se dedicavam os coitados que ainda sonhavam com um livro, uma carreira de escritor e talvez até um premiozinho.

Magdo tinha plena confiança no seu taco. Sabia que trazia embaixo do braço a renovação das artes literárias mundiais. Sonhara com o início, imaginara febrilmente o enredo e sucumbira a uma chave de ouro de arrepiar Dante. Mas, cuidado: não era poesia, nem nada poético. Era ficção, trabalhada em ouro, incenso e mirra.

Louis recebeu-o friamente, sentado que estava na cadeira preguiçosa do avô, lendo um novíssimo lançamento de três toneladas, talvez algum clássico russo desta vez traduzido diretamente da língua de Puchkin, cheio de expressões atualizadas, como "com certeza", como vira numa brochura de Crime e Castigo, de Dostoiweski.

-Estou sem tempo, Magdo. Aliás, teu nome não é de escritor. Parece erro de datilografia de escrivão ignorante.

- O que é isso, professor (Louis não chegara ainda aos 18 anos, mas obrigava a todos a tratá-lo como um diretor de escola). Quem me registrou foi o Febrônio, lembra dele, o maior cdf da cidade, aquele velhinho que passeia de manta de lã em dia de calor.

Com má vontade, o parecista deu uma olhada de soslaio (uma de suas palavras prediletas) na pequena resma de papel (ou deveria dizer pilha, só para contrariar quem adorava dizer resma?). Suspirou e emitiu seu decreto:

- Isso eu leio em três minutos. Volte na sexta-feira da semana que vem.

- Mas hoje é quarta! Vai levar quase dez dias nessa tortura?

Louis fitava o horizonte e depois devagar, como quem filmasse em câmara lenta, ia tornando os olhos gelados para o interlocutor. Era seu expediente mais corriqueiro. Sempre dava certo.

Magdo se conformou. Iria aguardar o Nobel até o prazo determinado. Mas depois, que não viessem esnobá-lo. Era certo que Louis iria exultar com a revelação daquela obra original.

Louis fingiu que sentia frio e voltou para dentro de casa, deixando o pobre escritor ao relento, obrigando-o a dar meia volta e cruzar o terreno que ficava em frente à casa do bobalhão letrado e ia até a linha férrea. Era assustador passar por ali, mas não tinha outro jeito. As aulas noturnas começariam em quinze minutos e se fosse contornar o parque, chegaria a tempo só para a segunda aula.

No meio do ermo, parou de repente. Junto a um vagão, uma sombra vestindo sobretudo e chapéu de feltro, fumando um cigarro, o aguardava.

- O que queres de mim, espectro? rugiu Magdo, que estava acostumado com aquele tipo de cena, tão comum na literatura policial que costumava devorar.

O Sombra desencostou do seu apoio e veio vindo devagar, com seu passo silencioso de Vulcabrás com sola de borracha.

- Vim te avisar, seu palerma, disse a aparição. E quem avisa amigo é.

- Dispenso os ditados e os lugares comuns. Desembucha logo.

- Nunca mais volte lá para aquele idiota do teu primo. Ele não sabe nada. E o pior é que não lê o que diz que lê. Sabe do que ele realmente gosta?

- Dos três patetas?

- Não isso, ele já tem de sobra em volta dele. Ele gosta é de ler as histórias miseráveis da pobre menininha que sofre com a perseguição das bruxas Alcéia e Meméia, que eram publicadas naqueles gibis da Luluzinha, lembra?

Magdo ficou branco de horror. Seu ídolo, o cara que iria encaminhá-lo para a vida literária, não poderia ser um troço desses.

- Pois é, sua besta. E ainda vais lá pagar mico para ele. Vê se te manca.

E o Sombra foi caminhando para trás, como um Michael Jackson cheio de estrias. Sumiu de um segundo para outro. Deixou um sabor de perda no ar.

- Pobre menininha, essa é boa, dizia Magdo, chutando as pedras que abundam por aquele lado sinistro da cidade.

Mas ler Luluzinha fazia parte da melhor porção de Louis, professor precoce e parecista literário da aldeia. No futuro, essa leitura favorita o levaria para longe do Padre Marcílio e o aproximaria, enfim, da poesia que ele negava porque tinha medo do escuro.

Magdo também seria beneficiado por essa paixão infantil do primo. Jamais o procurou novamente, e seguiu confiando no seu taco. Só se encontraram décadas depois, em Paris, numa conferência internacional sobre literatura. Foi quando se olharam por alguns segundos, muito compenetrados nas suas vestes de literatos. Mas a seriedade não durou muito tempo. Ao se reconhecerem, acabaram caindo na gargalhada, para espanto dos poetas, dos críticos e dos mestres do ofício.

É preciso dizer: Louis usava um sobretudo e um chapéu de feltro.

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