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14 de novembro de 2006
FICÇÃO, O PONTO DA MEMÓRIA
EXTRA - Na edição da revista Caras deste mês, na coluna Etimologia, do escritor Deonísio da Silva, saiu o seguinte texto assinado por este estupendo cronista e jornalista de primeira: "Refúgio: do latim refugium, refúgio, asilo, proteção, guarida. De acordo com a etimologia, quem busca refúgio está fugindo, pois o vocábulo radica-se em fugire, fugir. E este é o caso dos milhões de refugiados que hoje abandonam seus países pelos mais diversos motivos e buscam abrigo em outros, sendo as guerras os grandes motivos de maciços deslocamentos em todo o mundo, mas principalmente na Europa, na Ásia e na África. O escritor gaúcho Nei Duclós (56) dá, entretanto, à palavra refúgio um sentido mais ameno em seu livro O Refúgio do Príncipe: Histórias Sopradas pelo Vento (editora Empreendedor). Ao identificar, em Florianópolis, o lugar adequado para viver em paz, diz: "Que o nosso refúgio não sejam as paredes altas, mas a confiança nos outros". O livro é um verdadeiro hino de louvor à capital catarinense, apesar de várias de suas crônicas registrarem momentos adversos na história da cidade, como o triste episódio de 1979, quando o presidente João Baptista Figueiredo (1918-1999) quase se atracou com estudantes que protestavam contra uma homenagem ao marechal Floriano Peixoto (1839-1895)". Mestre Deonísio deu as caras. E o emocionado autor agradece. A seguir, a edição de hoje.
TEMPO - Memória é o que você lembra de maneira nítida e inequívoca de um fato passado. Uma criança ao sol, seus pés descalços sobre o pedregulho, um pequeno vapor cruzando o rio, um adeus na plataforma do trem. Ficção é quando você escolhe as palavras para resgatar esse fato. Não tem escapatória: na hora de contar, é a sua versão que domina, farol em meio à neblina do Tempo. E o acontecimento, por ter sumido, se esvanecido logo depois de acontecer, ficará sempre inacessível. Ficção, nesse caso, não é mentir, é imaginar o que realmente aconteceu. Há histórias escritas que se aproximam dos fatos, tanto, que a tua versão se sintoniza com a versão de muitos outros. Outras que alçam vôo e causam espanto aos que conhecem o que chamam de "verdadeira história". O segredo é fazer com que a ficção tenha vida própria e se debruce sobre a memória como quem tem a chave de um tesouro. Todos têm direito a dizer como foi. A narração é livre, como um potro criado fora do curral. É assim que memória e literatura se abraçam para costurar as abas soltas do tempo.
RESGATE - A História, ciência humana com inúmeras metodologias, é diferente da ficção, mas não muito. O historiador pesquisa o fato com o auxílio da memória pessoal e coletiva e compõe o texto rigoroso de resgate e análise dos fatos. O historiador cai na mesma arapuca do escritor: ele não tem nas mãos os fatos que se esvaíram, mesmo que conte com documentos, imagens, vídeos. O que ele possui são representações dos fatos, versões em forma de depoimentos, flagrantes, memórias. Como as palavras são traiçoeiras, um historiador não conta histórias, mas produz História, o que é bem diferente. O Historiador não é um ficcionista, embora muita gente acredite que é, e outros até conseguiram provar isso, como Hayden White, americano, autor de Trópicos do Discurso. A ciência exige que a argumentação seja convincente e faça justiça aos fatos. Não há, como costumam dizer os telejornais, testemunhas oculares da História. Você testemunha um fato, você pode ser o protagonista de um evento resgatado pela memória. História é outra coisa. Os protagonistas são representações e os eventos são encadeados dentro de uma lógica científica, jamais dentro de uma lógica espontânea.
ANTOLOGIA - Vamos pegar alguns exemplos do livro Causoseversos - nos confins do Continente de São Pedro, antologia organizada pela escritora Vera Ione Molina, presidente da Academia Uruguaianense de Letras, que voltou a funcionar na atual gestão do prefeito Sanchotene Felice e do secretário de cultura, Miguel Ramos. São muitos autores e é preciso selecionar alguns para efeitos desta edição do Diário da Fonte. Vamos começar com As praças desaparecidas contam a História, um ensaio de Antonio Nélcis Moura. É um enfoque criativo, que evidencia a ausência (as praças desaparecidas) para reconstituir a memória urbana e lançar as bases de uma História da cidade por meio das transformações dos espaços públicos, que se adequaram às mudanças políticas e pragmáticas. O texto faz parte da diversidade de rumos que a História tomou depois que os franceses demoliram o edifício de Ranke, o fundador da historiografia moderna, eurocêntrico e macrohistórico. Nélcis Moura usa o sumiço das praças da cidade como sinais, pegadas da trajetória de uma comunidade específica. É uma contribuição e tanto para quem gosta e precisa saber onde vive e o que aconteceu naquela fronteira.
CORTE - Com o texto Uruguaiana 1900, a professora Lucia Silva e Silva nos traz também mais um aspecto revelador da cidade, ao analisar os intendentes municipais na virada do século 19 para o vinte. Semente de um estudo maior, o texto que está nos livro nos enche de curiosidade e se destaca por fazer esse corte de um determinado período, numa pequena cidade. Nessa fração de tempo, ela retira uma série de contribuições ao entendimento da época abordada. Já outros dois textos, o de Genaro Alfano, sobre visitantes ilustres na cidade em tempos idos, e de Maria Josepha Pisacco Motta, que traça um perfil tradicional da fundação e destino da cidade, fazem parte de uma outra linhagem, pois atendem aos princípios mais amplos da História, mesmo que tenham abordado aspectos locais nos seus textos. É a forma de abordagem que faz a diferença. O corte feito por Silva e Nélcis é diferente do zoom de Genaro e Motta. Ambos valem a leitura, neste livro patrocinado pela Prefeitura de Uruguaiana.
ASSOMBRAÇÃO - Mas eu queria chegar é na ficção a partir da memória. É o que acontece, de maneira contundente, nos contos de Daniel Fanti e Fernando Pereira da Silva. Fanti, especialista na história das personagens da cidade, relata um causo de assombração e ao mesmo tempo nos dá um panorama dos costumes do início do século vinte. Seu texto tem o sabor da reconstituição feita com gosto, atenta aos detalhes e que leva o leitor para a vida escassa e precária de pessoas simples do povo às voltas com os mistérios do mundo. Fernando usa um episódio da infância, um jogo de futebol de rua, para mostrar uma grande personagem, Dona Zezé, apaixonada por futeboil e que entra em guerra com a gurizada ao reter uma bola que quebrou a vidraça da sua casa. Fernando, memorialista, amadurece cada vez mais como escritor ao deixar-se levar pela literatura. Seu conto acrescenta um ponto: sua capacidade de narrar de forma competente um episódio que deve rolar pelas conversas dos mais velhos. É uma história comovente, espécie de roteiro seguro de uma humanidade perdida no tempo, os adolescentes de uma época inesquecível, que voltam à tona por meio do talento do escritor.
DOR - Nessa primeira leitura, dois textos se destacam ainda: Desterro, um conto noir de Ricardo Peró Job, que mistura tradição e modernidade na vida de um protagonista assombrado pela idéia do suicídio; e O outro lado da ponte, de Vera Ione Molina, que nos traz um funeral e seus parentescos e a saída para fora do perímetro da cidade, para um limbo situado no país vizinho. São contos fortes, que abordam a dor e o desencanto e por isso mesmo reveladores de escritores exigentes. Voltarei ao tema, com mais autores que estão na antologia, da qual participo com o conto/crônica Quando falta luz, sobre o mergulho que fazemos na varanda, na escuridão, momento em que os vagalumes apontam diante dos nossos olhos.
RETORNO - Imagem de hoje: foto de Anderson Petroceli, o fotógrafo maior da fronteira.
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