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14 de novembro de 2004
OS SETE PILARES DA POESIA
Com sua primeira obra literária em 35 anos de trabalho poético, Marco Celso Huffell Viola reúne as estrelas de uma vida inteira (Esta resenha foi publicada no sábado, 13, no caderno de Cultura do Diário Catarinense, editado por Dorva Rezende. No mesmo dia, em Porto Alegre, Marco Celso, eu e Tailor Diniz debatemos sobre literatura na Feira do Livro de Porto Alegre. Antes do debate, nós dois e Paulo Markun participamos de programa da TVE do Rio Grande do Sul. O impacto do evento ainda será tema de nova edição do DF).
Nei Duclós
VENTRE - Marco Celso diz a que veio quando anuncia um assassinato: "Vou matar este poema com uma faca de trinchar,/ dividi-lo ao meio como um figo/ expor seu ventre hediondo ao público." Diz o que faz quando define o fruto que lhe sai das mãos: "Ele é um furo no escuro, um buraco cinza." Ou quando faz sua advertência de profeta irado: "Ele ficou incompleto/ estou amassando-o e dissecando-o para que nenhum leitor o devore com facilidade." Mas, além de se entregar à própria contundência, mostra sua doçura ao falar da origem dos poetas: "Eles são de outro mundo, de outros mundos/ eles caem aqui como estrelas cadentes." Quem são eles? "Conversam com seres que ninguém vê/ e ainda olham para a lua, para a lua!" Esses dois momentos estão na parte intitulada Poemas e poetas que dormiam na estante, um dos sete compartimentos em que ele dividiu Poemas para ler em voz alta (Office Editora, 136 págs., R$ 18), obra de estréia tardia. Junto com os outros, compõe uma sabedoria única, cevada no mais profundo segredo, pois Marco Celso é da estirpe dos poetas que se retiram porque não suportam a vala comum em que sempre transformaram a poesia.
GERAÇÃO - Seu trabalho nasceu no final dos anos 60, quando ainda menino, antes dos 20 anos, tornou-se um deserdado dos movimentos políticos estudantis e abriu caminho próprio, expondo poemas na praça e publicando um livro mimeografado que tinha como título uma profecia: Tombam os primeiros homens nos trigais. Tive o privilégio de participar com Celso desse movimento, precursor em todos os sentidos, da geração mimeógrafo, detectado só nos anos 70 pela universidade, assim mesmo confinado ao centro do país e não à Porto Alegre que explodiu em 1968 e provou o sal do exílio precoce já em 1969, época da exposição na praça. Mas não é a esse passado que Marco Celso se reporta (apesar de dar seu recado sobre a exclusão na orelha do livro que custeou do próprio bolso). O livro não é importante, avisa, o importante é a sua razão de ser. Sobre isso é que nos debruçamos. No primeiro pilar, Quase canções, o leitor conhece os sinais mais expostos desse terremoto poético, escutando coisas como: "Já fui frade, rabino, santo, imã/ um pecador e tanto e tive tato/ com todos os sentidos/ babei um tanto, comi rato e fugi da peste." No que se transformou essa criatura? "Sou artista, burlesco, saltimbanco/ saltinvento,/ saltimento, pinto todo/ o muro branco." Grafiteiro de uma revolução, o poeta celebra o pão ("a saga que perseguimos/ onde somos/ os únicos heróis") e o amor, que "é tão completo que até o mal dele necessita para ser amado/ é desta matéria incombustível que arde em nós, que somos compostos/ e não há fogo, água, não há mágoa que o detenha". De amor é feito o poeta: "Hoje é um bom dia para morrer de amor por ti e nada mais".
PERDA - Depois desse impacto inicial, que ocupa metade do livro e apresenta o poeta em toda a sua lúcida demência, um Intervalo sugere o dimensionamento emocionado das perdas, especialmente daqueles que se foram por terem voz e que foram calados. Os ossos do amigo morto servem para se referir à "tua mulher que nunca te esqueceu e que ainda te chama baixinho". A música da sua poesia tem ligamentos profundos, tornando-se inútil separá-la em versos, porque nos surpreende pela composição soberba, pela grandeza sinfônica com que fala da morte e do esquecimento, essas coisas duras demais para a poesia de hoje, que mais parece jogo de armar do que o instrumento cortante de que se serve Marco Celso. Mas o poeta não foge da herança poética e dedica uma das partes a um exercício lúdico: Atirando sonetos italianos na parede, onde fala em faces roubadas que não nos pertencem e na do tempo e seu colar de ossos, do amor desesperado que é confundido com amizade ou do amor perfeito que reina acima de tudo o que é e considerado essencial. Os Hai-Kais também merecem sua atenção de poeta múltiplo, onde é possível tecer com a linha do horizonte, construir a casa na asa do pássaro e saber que um único mantra entoa tudo o que existe. No capítulo seguinte, já citado, ele se dedica a interagir com alguns poetas, como Lorca, Pessoa, Bandeira, Drummond. Desde muito cedo, Marco Celso gostava de implicar com os mestres, numa afirmação de identidade que tinha tudo de adolescente e que nesta obra revela a maturidade do poeta que assume a vanguarda sem se entregar a vanguardismos.
RITMO - Em Armações, Celso novamente nos deslumbra com o ritmo que consegue captar na arte popular (no rap, por exemplo), nas quadrinhas e nos temas como a beleza, que aqui são virados de cabeça para baixo. O sétimo pilar é Para ler em silêncio: nele, a profunda percepção do mito encarnado por palavras e letras é um fecho de sabedoria cifrada, que ele traz à luz como um predestinado. Marco Celso tem esse perfil: o poeta que todos apostaram que já tinho ido embora, mas quando surge nos diz que sempre esteve conosco e traz a boa nova da poesia sem máscara, a que tem o dom do encantamento e a fúria da tempestade.
RETORNO - Agradeço à organização da Feira do Livro, que na pessoa de Jussara Carvalho me recebeu com muita competência e carinho em Porto Alegre. E dou os parabéns ao patrono do evento, professor e escritor Donaldo Schüler, pelo sucesso do aniversário dos 50 anos desse acontecimento cultural. E agradeço à minha editora, W11, e seu diretor Wagner Carelli, que me proporcionaram essa viagem de resgate, supergratificante, que será devidamente reportada em todos os detalhes. Especialmente a alegria de reencontrar amigos eternos, que lá foram me dar um abraço.