Quem acampou na chuva, quem tem apenas um fósforo e está só, no ermo, quem tenta tirar faísca de madeira verde, quem não consegue fazer uma pequena chama, que dirá uma labareda, sabe o deslumbramento que é um raio depois de horas de nuvens carregadas. Como a natureza pode fazer corisco apenas com água suspensa? Se houve alguém que um dia tentou chegar na primeira chispa, deve ter desistido muitas vezes, depois de uma vida vendo o fogo quando não esperava e longe do incêndio quando mais queria. Ele sentou-se numa pedra numa tarde em que se prenunciava a tempestade e notou o susto de uma veia saltada de néon no azulão escuro do céu. Só um milagre poderia ensinar alguma coisa sobre esse mistério. Assim também acontece no texto.
ESQUELETO - Acumular histórias, informações, falas, não faz de ninguém um escritor. O que faz de nós um escritor é o gatilho do texto, a faísca que bota fogo na montanha de coisas que juntamos, o grude que garante a massa, quando tudo finalmente faz sentido. Comparo o resultado dessa faísca que gera vida com um esqueleto imantado. O bruto está no meio da sala de anatomia e os meninos bocejam. De repente ele dança o twist e pára. Um dos alunos vê e se aproxima. Os outros continuam na sesta da indiferença. Então o garoto chega perto e é sugado pelos ossos do sujeito exposto. O aluno é a informação, o detalhe, o dado, a declaração. O esqueleto imantado é a narrativa. Ele atrai a inocência com prazer e a faz parte de si. Os outros continuam indiferentes quando então descobrem que algo acontece na figura que toma conta do recinto, e correm o risco então de serem também sugados pelo imã. O encantamento provocado por um texto vem dessa junção de criaturas dispersas, que acabam formando algo único. Vi esses dias uma reportagem na TV sobre pescadores do nordeste. O personagem entrevistado, velho pescador de Fortaleza, falava em vento misturado, do nordeste e sul ao mesmo tempo, e era debochado constatemente pelo repórter (eles nunca falham). Foi a fagulha que faltava para a história que eu guardava num canto de mim, do vigia do mar. Descobri naquele instante que a mudança contínua era o universo de quem estava sempre dependendo das águas para viver, e quem não participava daquele mundo não conseguia entender esse redemoinho. Fiquei meses com a narrativa em potencial. Mas foi aquele clarão que juntou as peças dispersas.
GERAÇÃO - Gim Tones anuncia sua volta à ativa, com um texto de arrepiar sobre a mudança brusca em sua vida. Criado por Fabio Murakawa, Gim estava há sete meses escondido num armário escuro. Voltou para nos deslumbrar como um dos grandes talentos de uma geração que já começa a arrebentar os portões. É bom ficar atento aos escritores na faixa dos 30 anos que ainda não foram descobertos pela mídia (essa eterna preguiçosa). Por exemplo: emerge na internet as histórias de daniduc, escritor que chega com uma linguagem madura, pronta e altamente hilária e personalíssima. Daniel Duclós, o emérito daniduc, decidiu mergulhar nesse ofício que o criou desde o início da vida. Às seis da manhã, todos os dias do verão em Vitória, daniduc alimentava-se de sol nascente. Ele traz essa luz consigo e nos ilumina com força. Suas histórias pegam firme. Na mesma faixa de idade, nasce o texto de um repórter que pegou a manha da narrativa: Fabio Mayer, aqui de Floripa. Fabio é o maior ouvinte do planeta. Você fala e ele escuta. Pensei que não existissem mais seres como esse. Mas existem. Ele descobriu como se faz o fogo num dia de sol de primavera. E levantou vôo. Preparem-se.
BARCA - O talento dorme dentro de nós como Deus na barca. Lá fora, a tempestade. Entramos em pânico, vamos afundar. Despertamos então aquele que nem toma conhecimento do nosso susto. Ele se levanta, se equilibra na precária superfície e faz um gesto. As nuvens se dissipam e ressurge o dia. Ele então pergunta por nossa fé. Onde estava a fé quando a barra pesou? Essa pequena e deslumbrante explicação de Alan Kardec para um trecho do Evangelho serve para nos revelar o segredo. Acredite que vai conseguir. Carregue-se. De repente, o céu se ilumina com um clarão. É tua alma que implodiu diante do sagrado. Você atingiu a forja dos deuses.
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