14 de outubro de 2004

A VILANIA DIGITAL EM SUPERMAN III

Superman significa a velha tecnologia: o cara é de aço, tem visão de Raio X e voa como um avião. A revolução digital ainda estava no início em 1983 (e portanto era encarada como suspeita, inimiga da tecnologia dominante), quando Richard Lester dirigiu Superman III, o melhor filme da série, com o ator Christopher Reeve, que depois de longa agonia paralizado, morreu prematuramente aos 52 anos. Para quem, como os da minha geração, foi criado vendo o Super Homem em close e braços esticados fingindo que voava, a performance de Reeve (nos ventos da nascente digitalização das imagens) era um deslumbramento. Não só se deslocava de corpo inteiro, como pousava suavemente. Mas aquela ilusão trazia uma denúncia. Os computadores significavam o Mal. IDÉIAS - Apresentei esse insight na cadeira de História das Idéias, do professor Nicolau Sevcenko, da USP, que me deu uma nota razoável, talvez porque tenha atendido seu pedido: fiz um trabalho curto. Eu sou um só, dizia para suas centenas de alunos/admiradores. Mas vocês são inumeráveis. Se eu for para cima de vocês, não acontecerá nada. Mas se vocês vieram para cima de mim, eu não sobreviverei. Por isso, por favor, não ultrapassem as cinco laudas. Sevcenko é um dos mais brilhantes professores do Brasil e ter feito três cursos com ele foi um privilégio. No final de cada um, sempre aplaudíamos, não porque fizesse show, mas porque sabe demais. Sevcenko sobra. Só uma aula sobre o exército de Napoleão e as diferenças em relação aos exércitos tradicionais valeu por dez anos de faculdade. Sem falar nos seus livros, como o impressionante Orfeu Extático da Metrópole, que descerra a cortina de Sampa dos anos 20.

USP - Sinto falta da inteligência, do conhecimento, do acervo da USP, a universidade maior. Um curso de História do Brasil com o professor István Iancsó abriu meu espírito para o dúvida permanente em relação a tudo o que aprendi sobre o país. O Brasil é com-pli-ca-do, dizia escandindo as sílabas o húngaro que nos adotou e escreveu um livro magistral sobre a revolução dos alfaiates, Na Bahia, contra o império. István nos expulsa para sempre de qualquer anacronismo, o vício de enxergar o passado com os olhos do presente. Para esta época onde a revista de História estampa a manchete de um Alexandre Magno Jovem ( no sentido da juventude inventada nos 60; Alexandre nada tinha a ver com a palavra jovem) as lições de mestre István são valiosíssimas. Comparo suas aulas à metáfora criada por Chico Buarque na contracapa do primeiro disco de Gil. Chico compara a música de Gil à serpentina, que sempre nos surpreende, pois ao cair no chão dá mais uma volta antes de parar definitivamente. Quando a gente achava que tinha entendido tudo, István nos depositava, desarmados, na praia do nosso desconhecimento. Só assim poderíamos aprender alguma coisa. O curso que fiz com ele foi também para recém chegados à faculdade. Via então os olhos de pavor da meninada (o assustador abismo das possibilidades). Dos outros professores digo só o seguinte: Nanci Leonzo é fundamental para se entender o Brasil inventado pelas Forças Armadas; Teresa Aline é decisiva quando nos ensina a ver uma imagem para decifrar a sociedade que a produziu; Ulpiano Bezerra coloca a História Antiga no lugar devido, ao nos mostrar como podemos aprender sobre os ancestrais ao analisar documentos antiqüíssimos, sintéticos, aparentemente banais. E assim por diante. É a seleção brasileira de ensino. Só que faz gol o tempo todo, jamais empata.

RADICAL - No Superman III, Richard Pryor interpreta o ladrão que programa o sistema da empresa onde trabalha para receber os centavos devidos aos funcionários (sobras de salários). É descoberto então pelo dono da firma e é encarregado a construir um robô digital para enfrentar Superman. A briga entre a velha tecnologia da liga de ferro e carbono contra o monstro camaleão, ameaçadoramente virtual, é reveladora dessa transição que está longe de se resolver. No fundo, uma revolução veio da outra e as duas se completam, pois também o que era tradicional modificou-se junto com a radicalidade que trafega nas bandas largas da vida. Sempre achei essa interpretação óbvia, mas não vi nada parecido em nenhum lugar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário