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10 de julho de 2004
UM PASSEIO EM PARATY
Nosso correspondente em Paraty, surpreendentemente, é Sinistrus Joe, aquele que, quando todos se mandaram , aí pela grande crise do Plano Cruzado, permaneceu na ponta de uma praia oculta aqui de Floripa. Como vive só, numa casa de pau-a-pique, ao lado de gigantesco menir arqueológico, achava que jamais se daria o trabalho de viajar. Pois ele foi para a Flip e já voltou. Fez tudo de avião. Ganhou a mesada de um milionário, ex-companheiro de viagens dos anos 60, que é herdeiro de fortuna, um espólio meio escandaloso de indústrias sucateadas. O longo cabelo crespo branco revolto de Sinistrus Joe realçava seu olhar de um azul furibundo. Fiz nova entrevista. Desta vez, ele estava mais acostumado comigo.
TITÃS ? Perguntei pelo encontro literário internacional e Sinistrus Joe, direto como sempre, interrompeu-me pelo meio da frase:
- Tem sempre um Titã no meio!
É verdade. Se é festival de música, lá estão eles. Se é matéria sobre filhos recém nascidos, manda-lhe um Titã. Se é livro, de novo eles. Parecem até aquele magrinho de Porto, que foi comprar um cachorro-quente. O hot-dog portoalegrense é pioneiro nessa história de colocar um monte de coisa junto com a salsicha, desde salsinha, queijo e até milho. Vai milho? perguntou o cachorreiro. Sóóó, respondeu o magrinho, completamente pronto naquela hora do dia. Aí o ambulante fez de propósito: colocou só milho. Pois é assim que parece a Sinistrus Joe: onde acontecer qualquer coisa, só tem Titã. Aliás, eles estavam na festa gigantesca da Tim esses dias.
- Mas Arnaldo Antunes é um bom poeta, argumento.
- Sol a sós é dose, grunhiu o ermitão.
Ele se referia a um verso do badalado Titã.
- Os não-livros não se satisfazem em ser o que são, disse. Agora estão diminuindo de tamanho. Dizem que ninguém lê. Claro, não-leitores não lêem, só os leitores mesmo. Daqui a pouco todos vão se abaixar bem para ver o que está escrito naqueles minúsculos produtos de entretenimento e vão acabar achando só aquela síntese total da língua portuguesa.
- Qual é, Sinistrus?
Como é um cara antigo, ele sussurrou o palavrão de duas letras no meu ouvido.
- ??? pasmei
- Sim, sim. Os livros de verdade ficam para os estrangeiros. Os de fora fazem livros grossos, até mesmo livros grossos infantis, como os do Harry Potter. Mas não cai a ficha dos caras.
LIVRISMO - Lembrei então do livrismo:
- Tinha muita criança lá, Sinistrus?
- Muita, muita. E não tinha o Mauricio de Souza, mas o Jaguar. Todos livristas. E mais o Cae, que publicou aquele Noites Tropicais, por isso também é autor.
- Mas Caetano é gênio, Joe. Por que a implicância?
Ele então me segredou que foi lá levar seu romance inédito para ver se encontrava editor. Mas o confundiram com um catador de papel, e lhe deram umas esmolas. Ele mostrava as resmas de folhas escritas em papel de almaço, jurando que era um romance inédito, mas ninguém deu bola. Perguntei do que se tratava o livro.
- Sobre os gigantes, respondeu. Os gigantes que me aparecem ao vivo e às vezes em sonho. Eles existem, estão aí, são criaturas-montanhas.
E me olhou, furibundo. Perguntei se tinha dormido ao relento e ele me respondeu que ficou na pensão do Paulinho. Gostava do Paulinho, que contava as histórias mais mal-assombradas sobre as cercanias de Paraty, de estradas coloniais misteriosas, vários tipos desconhecidos de onça. Isso assustava os turistas, que preferiam ir dormir na praça a ter que aturar as conversas. Sinistrus escutava Paulinho até o amanhecer.
- Viste algum gigante por lá? perguntei, meio distraído.
Ele ficou furioso. Adiantou-se alguns passos (estávamos na beira da praia, gelada neste início de inverno) e olhou para os fios, os postes de luz. Apontou-me um urubu pousado em
cima de uma luminária, uma coruja sobre o mourão de uma cerca.
- Acredita no urubu? Na coruja? Então tem que acreditar nos gigantes.
E foi-se, chutando conchas. Cantava baixinho algo de João Gilberto. Joe adora João. Gritou lá da frente:
- João Gilberto não é babaca. Nunca tirou o terno, nunca foi a uma festa de livros, nunca deixou de ser o que é. Tá todo mundo fantasiado. Querem ser tudo. Onde estão os autores? Perdidos, vendo a vida passar totalmente inédita!
Batia na sacolona que trazia a tiracolo, onde guardava, acredito, seu romance inédito.
- Ninguém quer saber, querem só badalar, fazer pose. Quem vai lá também fica fazendo pose. Conheço montes de romances inéditos. Para onde vão? Para o bucho das traças. Sol a sós um bom cacete. O sol bebe cerveja comigo ao anoitecer.
CRISTINO - Figura esse Sinistrus Joe. Ninguém dá bola para ele. Quando o revelei, aqui no DF, não houve um comentário sequer. É a maldição dessa geração. Ser esquecida em vida. Ser enterrada cheia de coisas para dizer. Vendo todos se locupletarem na festa sem fim. Dei de ombros e fui para a casa. Que me importa tudo isso. Vou para baixo das cobertas. Os barzinhos de Paraty, diz a TV, estão lotados. Deve estar bom lá. Caco Belmonte foi, Tony Monti foi. Estão se divertindo. Quem sabe cravam um editor bom de bola e explodem na praça.
No meio da noite, ouço passos pesados. E uma voz que espicha as vogais, gutural:
- Os gigantes, escuto Sinistrus Joe dizer. Os gigantes estão bem perto de ti, cara. Os gigantes...
Será que o Paulinho, dono da melhor pensão de Paraty, viu algum deles? Me deu saudade daquela cidade. Tive que sair da velha Paraty para encontrar um chinelo forte, que aguentasse as pedras do século 18. Fora daquela maravilha arquitetônica, as calçadas e ruas são como qualquer outra cidade brasileira. Caminhões estacionam, ambulantes deslizam. E no pobre riozinho, aquela chata que fica tirando lama do fundo e que é sustentada por dinheiro japonês, faz barulho. Já tinha visto uma chata dessas no Tietê, por longos anos. Tiravam barro do fundo, financiada a fundo perdido. Será que é a mesma chata?
- Os gigantes, cara, eles estão aqui. Tenho medo, Cristino. Tenho medo da dor e da morte...
Deus do céu. Sempre que escuto algum sussurro, me vem o cangaceiro de duas cabeças do inesquecível Othon/Glauber.
RETORNO - Graças ao webmaster Miguel Duclós, meu site conta agora com avançado e sofisticado sistema de busca. Ficou bem mais fácil pesquisar nesse espaço autoral, que já começou gande e hoje está maior, com textos de memórias, resenhas e ensaios sobre livros e filmes, trabalhos acadêmicos e muita coisa mais.
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