20 de fevereiro de 2004

LEMBRANÇAS DE ANGOLA

A filha de uma das melhores amigas da minha mãe escreve um artigo revelador sobre sua experiência na África. Publico a seguir a maior parte do texto. Ela é Maria da Graça Lisboa Pereira da Silva, Pedagoga/Professora de Educação Física pela Universidade Federal de Santa Maria, a cidade-coração do Rio Grande do Sul. Sua especialização é em Natação pela University of Alberta, Edmonton, Canadá. Maria da Graça é irmã do meu amigo Fernando, o escritor que resgata Uruguaiana pela memória e a reportagem histórica.

PRIMEIRO IMPACTO - "Nos idos de junho de 1981 fui contratada como Pedagoga e Professora de Educação Física pela “Projed/Projetos educacionais”, para trabalhar na implantação de uma creche em Luanda, capital de Angola, na África, para atender aos filhos dos funcionários da Sonangol—Sociedade Nacional de Combustíveis de Angola. A Projed é sediada em Porto Alegre e, na ocasião, era administrada pelo Coronel Mauro da Costa Rodriguez, que havia sido Secretário de Educação do Rio Grande do Sul e Secretário Geral do Ministério de Educação, na gestão do ministro Jarbas Passarinho. O projeto foi realizado pela Interbrás/Petrobás, exportadora de técnicos, por meio de empresas capacitadas e com credibilidade, contratadas para serviços específicos.
O primeiro impacto, ao chegar a Angola, foi o choque de culturas, principalmente por causa do regime comunista vigente no País, que me reservava tantas surpresas e problemas. Em compensação, tive também muitas emoções que me deixaram lembranças inesquecíveis de um povo carismático, sofrido e muito carente. Na ocasião, sofria Angola de instabilidade política, com guerrilhas entre as facções do MPLA, da UNITA e da FNPLA. A implantação da creche modelo, que comportava 300 crianças, de recém-nascidos até seis anos, foi iniciada com entrevista a 400 pessoas interessadas em preencher as 110 vagas disponíveis nos diferentes setores. Foi ministrado às pessoas selecionadas um treinamento de oito meses, nas respectivas especializações.

RACIONAMENTO - Éramos oito brasileiros. Nosso trabalho foi inicialmente coordenado por uma agente do partido comunista, de nome Clorinda, que, além de controlar o grupo, tentava exercer sobre nós um poder político e pessoal, como sempre. Vivendo em uma situação controlada, aconteciam fatos inusitados, como as compras para alimentação, que eram feitas por meio de um “cartão de cooperante”, que os estrangeiros recebiam ao chegar a Angola, para fazer compras no “supermercado dos cooperantes”. Esse cartão servia para comprar somente duas unidades por semana, de cada produto e, às vezes, não ultrapassava vinte diferentes produtos. Por causa do racionamento permanente, havia grande falta de produtos.
Este racionamento levava a trocas de produtos, chamada “candonga”. Os angolanos trocavam alimentos conosco. Também os cubanos tentavam fazer candonga com os brasileiros. Queriam tudo, até roupas. Hoje vemos isso sem surpresa, considerando o mercado negro existente em Cuba. Já os soviéticos eram mais arredios e não se misturavam ao “proletariado”, que eles consideravam seres inferiores. Nas manhãs de sábado utilizávamos nossas folgas para fazer compras no mercado central “Kinachiche”, que era bastante pobre mas onde encontrávamos frutas típicas da estação, alguns legumes e verduras, peixe fresco e trabalhos de artesanato. Recebíamos por malote, da Projed, suprimentos não existentes em Luanda, que, às vezes, eram trocados por alimentos frescos vendidos no mercado.

KWANZA - A moeda nacional era o kwanza. No mercado oficial trinta kwanzas valiam um dólar, entretanto, no mercado negro, que espelha o valor real da moeda local, eram necessários 400 kwanzas para adquirir um dólar. Em Cuba acontece fenômeno semelhante, em relação ao peso cubano. Posteriormente, para que Angola melhorasse seu relacionamento com os países da África Central, idealizaram os “I Jogos da África Central”. Eu, como professora de Educação Física, e a colega Marlise Jacinto, como Enfermeira, fomos requisitadas pelo Partido para nos incorporarmos ao grupo de trabalho. Fomos afastadas da creche por três semanas. Tudo fizemos para que os jogos fossem bem sucedidos.
Todas as atividades eram totalmente controladas mas tivemos o privilégio de receber um cartão permitindo circular nas horas proibidas pelo “toque de recolher”. Conseguimos, com nossa influência, colocar o grupo da PROJED em lugar destacado para assistir as festividades de abertura dos jogos no Estádio Municipal.
As alunas que treinamos para tomar parte na cerimônia tinham direito a melhor alimentação. Tivemos, assim, freqüência absoluta. Deixei uma parte da minha saúde em Angola, ao adquirir malária. Fui cuidada por minhas incansáveis alunas, que, durante uma semana, se revezaram noite e dia, ajudando, com métodos primitivos, amenizar a febre alta que me assolava. Tratei-me também com quinino, ministrada por médicos, além do carinho das colegas Clélia Dias e Maria Alice Baptista. Graças a esta equipe é que posso estar escrevendo esta história.

CORAÇÃO - Pelos noticiários temos conhecimento que Angola está em fase de reestruturação. Tenho pensado nas crianças daquela creche que lá deixamos há vinte e um anos. Elas são a nova geração daquele povo tão sofrido, tão perturbado por interesses internacionais, tão rico em recursos minerais. Estima-se que seu subsolo albergue 35 dos 45 minerais mais importantes do comércio mundial, dentre os quais destacamos: diamante, fosfato, ferro, cobre, magnésio, ouro e rochas ornamentais, além de petróleo, substâncias betuminosas e gás natural. Se toda esta riqueza fosse bem administrada, Angola estaria entre os países de melhor qualidade de vida do mundo.
Angola foi uma experiência maravilhosa, que merece um livro. As lembranças são incomensuráveis. Se tivesse a oportunidade, faria tudo de novo e inteiramente de graça. Realmente deixei meu coração na África. Lá nos realizamos como profissionais e como seres humanos. Dedicamo-nos àquele povo com todo nosso coração e temos a certeza de que não fomos esquecidos e que a recíproca foi verdadeira."

RETORNO - Meu poema Jimi, sobre Hendrix, o gênio que espichou o universo para fora de todas as fronteiras, serve de abertura para magnífico texto sobre aquele que nos tornou melhores no blog http://www.hugabuga.hpg.ig.com.br/jimihendrix.html

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